Francisco de Assis
era o chefe de um grupo de jovens e barulhentos trovadores da sua cidade natal.
O ambiente do século em que ele viveu era marcado pela poesia e pela música da
cavalaria, que, mais tarde, resultarão na lenda do Rei Artur e seus cavaleiros.
Esse espírito cavalheiresco e de trovador não foi abandonado por Francisco após
a sua conversão. Pelas ruas de Assis e dos burgos da região, ele, juntamente
com seus companheiros, cantava louvores a Deus, chamando os seus ouvintes à conversão.
O Cântico do Irmão Sol carrega esse espírito trovador de Francisco. Entretanto,
para conhecermos em profundidade o espírito presente nos versos desse cântico,
é importante saber o contexto em que ele foi gestado.
O Cântico do Sol é
um cântico à luz. Mas esse cântico jorrou da noite mais escura e profunda. O
período em que o Cântico do Irmão Sol começou a ser redigido foi um tempo
particularmente difícil para Francisco. Dois anos antes de sua morte, após
receber os estigmas do crucificado no monte Alverne, Francisco fez-se
transportar até São Damião, local de moradia de Clara e suas irmãs. A própria
Clara preparou-lhe uma palhoça com caniços e ramagem para protegê-lo da luz do
dia. Uma doença dos olhos contraída durante sua estadia no oriente já o havia
feito perder praticamente toda a visão. Nessa palhoça, Francisco passou mais de
cinqüenta dias sem poder suportar a luz do sol ou do fogo à noite, com muito
sofrimento causado pela sua doença (..)Foi nesse ambiente que Francisco começou a compor o seu Cântico do Irmão Sol, depois de receber a certeza de que participaria do reino celeste. Compôs os versos e a melodia para os mesmos, que ensinou aos seus irmãos. Instruiu esses mesmos irmãos a cantarem o cântico quando fossem pelo mundo e que o cantassem depois das pregações. Dizia que “Ao nascer do sol, deviam todos louvar a Deus por ter criado este astro, que durante o dia fornece luz aos nossos olhos; assim também, quando anoitece, todos deviam louvar a Deus por essa criatura, o nosso irmão fogo, que nos alumia os nossos olhos. Por isso nós devíamos, por estas e pelas outras criaturas que usamos todos os dias, louvar sempre o seu glorioso Criador”. Nos momentos em que estava mais atormentado pelas suas enfermidades, ele começava a entoar o cântico e pedia aos irmãos que prosseguissem. E assim foi até a hora da sua morte
Essa capacidade de
louvar o sol, a luz e as demais criaturas, mesmo sem poder contemplá-las,
resulta da pacificação que foi sendo operada na vida de Francisco desde a sua conversão.
Francisco é uma pessoa reconciliada com a sua própria humanidade, com os seus
limites, com os seus medos. E porque há essa reconciliação interior, todas as
demais criaturas são vistas como irmãs, fráteres, sorelas. Por isso Francisco
pode cantar: amo irmã Clara, amo o irmão sol, amo o irmão fogo, amo o irmão
verme. E foi dessa fraternidade ecológica que nasceu um dos mais belos escritos
místico-ecológico do ocidente: o Cântico do Irmão Sol.
“Altíssimo,
onipotente e bom Senhor, vossos são o louvor, a glória, a honra e toda bênção”.
Assim Francisco inicia seu Cântico do Irmão Sol, afirmando já no início o
sentido e a fonte de todo o louvor que se seguirá. Somente Deus é digno de ser
louvado. Reaparece aqui mais uma vez a reação de Francisco contra o desejo
latente que existe no ser humano de apropriação. Nada nos pertence e tudo
pertence a Deus e somente a ele é devido o louvor. Na raiz da violência contra
a vida de todas as criaturas está esse desejo que faz com que o ser humano
disponha das demais vidas humanas e sacrifique o planeta de forma inconseqüente
com as gerações que nos sucederão. Mas,
Francisco dá-se conta de que nem mesmo é possível louvar a Deus, pois “homem
algum é digno de vos mencionar”. É então que ele se volta para toda a criação,
espelho da bondade desse mesmo Deus. Há, primeiramente, um movimento em direção
ao alto, que parece arrancar o homem da terra, distanciando-o das demais
realidades terrenas. Mas, esse movimento de ascensão tomará, ao longo das
demais estrofes, a direção horizontal da fraternidade com as criaturas.
Três pares
aparecerão dispostos lado a lado ao longo do cântico: o sol e a lua, o vento e
a água, o fogo e a terra. Há aqui um sentido de totalidade, sinal da integração
daquela ecologia interior já referida anteriormente: três pares de elementos,
entre os quais figuram os quatro elementos tidos como essenciais pela filosofia
e mentalidade de então (ar, água, fogo e terra). As criaturas, transformadas em
freis e irmãs – integração do masculino e do feminino, – são convidadas a
louvar a Deus, de quem procede todo o bem.A pessoa de Jesus aparece de forma implícita no cântico através de três elementos: do sol, figura de raízes bíblicas para indicar o messias esperado; através das trinta e três linhas do cântico original, referência à idade de Cristo no momento de sua morte; e através do confronto das primeiras com as últimas palavras do cântico: Jesus é o altíssimo que se fez humilde, é o onipotente que se fez servo de todos.
É importante notar que Francisco sabe reconhecer a utilidade de todas as criaturas, mas essa utilidade assume um caráter bem diferente do utilitarismo moderno que depreda a natureza em função de um suposto bem estar da humanidade. O sol é útil porque clareia o dia e nos ilumina; a água é útil e preciosa porque sacia a sede do homem e da terra, que por sua vez produz frutos, ervas e flores para os animais e para o ser humano; a lua e as estrelas no céu despertam no humano o sentimento do belo, da poesia.
O cântico prossegue convocando o homem e a mulher a louvarem a Deus através da reconciliação e da paz, que constituem o verdadeiro louvor para Francisco. Essa penúltima estrofe não fazia parte do cântico original. Foi acrescentada por Francisco em julho de 1226 para buscar a reconciliação entre o bispo e o podestá (o prefeito) de Assis. O bispo havia excomungado o podestá, que por sua vez, decretou que nenhum cidadão de Assis podia ter com ele qualquer relação comercial ou legal. Francisco pediu que ambos se reunissem no palácio do bispo e, quando lá se encontravam, dois frades levantaram-se e cantaram o cântico como Francisco lhes havia ordenado. Foi o suficiente ambos se reconciliarem e evitar uma guerra civil na cidade.
Como os demais elementos do cântico, o humano aparece em par com um segundo elemento. Reconciliado com todas as criaturas e com o seu semelhante, resta a Francisco e à humanidade a reconciliação definitiva com a morte, companheira inseparável do ser humano e de toda forma de vida. Este último verso do cântico foi composto no princípio de Outubro de 1226, poucos dias antes de sua própria morte. Quando sentiu-a próxima, pediu que o despissem e o colocassem nu sobre a terra que ele havia cantado como irmã e mãe. Nu sobre a terra, Francisco manifestou a radical condição humana face ao Absoluto, diante do qual nos apresentamos despidos de nossas máscaras, revestidos apenas com nossa pobreza. Mas esse gesto possui também um outro significado não menos importante: a reconciliação e o retorno do humano ao útero materno da terra, de Gaia.
E assim, cantando, Francisco morreu. Deixou-nos na saudade e na orfandade. Mas também herdeiros de uma riqueza místico-ecológica que pode ajudar a humanidade a sair do caminho da autodestruição em que tem enveredado.
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