terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Alerta vermelho na nave azul

André Trigueiro
Um recurso natural finito, escasso e cada vez mais raro, absolutamente precioso para a vida da maioria absoluta das espécies – incluindo a nossa – justificou a realização de mais uma campanha de alcance planetário patrocinada pela ONU. Dez anos depois de as Nações Unidas elegerem o Ano Internacional da Água Doce (2003), o assunto retorna com força total agora em 2013, o Ano Internacional da Cooperação pela Água.

Em números a situação é a seguinte: 11% da população mundial ainda não acessam fontes seguras de água potável, e estão expostas a uma série de doenças de veiculação hídrica (mais de 40% dessas pessoas vivem na África Subsaariana). As principais vítimas são as crianças: mais de 3 mil óbitos por dia em todo o mundo, na maioria dos casos, por diarréia. Apesar disso, houve avanços importantes. Entre os anos de 1990 e 2010, mais de 2 bilhões de pessoas passaram a dispor de redes mais seguras de abastecimento de água. Esse esforço coletivo permitiu que o percentual de seres humanos alcançados por fontes mais confiáveis de água subisse para 89% (aproximadamente 6,1 bilhões de pessoas), acima da meta dos 88% traçados pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
O grande desafio continua sendo acelerar os investimentos em saneamento básico. Apenas 63% da população mundial têm acesso a saneamento de qualidade. Um dado curioso do relatório produzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), é que aproximadamente 1,1 bilhão de pessoas em todo o mundo ainda fazem suas necessidades fisiológicas a céu aberto, sem banheiro. No topo do ranking aparece a Índia com 626 milhões de pessoas sem banheiro, seguida da China (14 milhões) e do Brasil (7,2 milhões).

É preocupante a lentidão com que o saneamento básico avança no Brasil. Segundo o IBGE, de2009 a2011, a expansão da coleta de esgoto foi de pouco mais de 3%. Para um país em que quase 40% dos domicílios não estão sequer conectados à rede coletora, é muito pouco. Para piorar a situação, em boa parte dos casos em que o esgoto é coletado, não há tratamento. Ou seja, há uma rede coletora construída sem que a destinação final seja adequada. O próprio governo federal reconhece que apenas 38% de todo o esgoto produzido no Brasil recebem algum tipo de tratamento. O resto impacta violentamente rios, lagos, manguezais e partes do nosso litoral.
São aproximadamente 15 bilhões de litros de esgoto sem tratamento despejados a cada dia no Brasil. Isso equivalente a 6,3 mil piscinas olímpicas saturadas de matéria orgânica. Segundo o Instituto Trata Brasil, aproximadamente 2.500 crianças morrem por ano no país por doenças causadas pela falta de saneamento básico, principalmente diarréia. Além da degradação dos ecossistemas, esse bombardeio diário de esgotos “in natura” em nossas águas determina o afastamento de 217 mil trabalhadores de suas respectivas atividades profissionais a cada ano por problemas gastrointestinais. A cada afastamento perdem-se 17 horas de trabalho, o que implica em custos adicionais de R$ 238 milhões por ano em horas-pagas e não trabalhadas. Culpa da água contaminada.

Enquanto ignoramos os índices escabrosos de poluição, e as estatísticas preocupantes de perda de água tratada na rede (algo em torno de 35%), alguns de nós ainda gostamos de lembrar com certo ar ufanista que o Brasil é o país campeão mundial de água doce, com 12% das reservas mundiais das águas superficiais de rios, sem contar o enorme volume do precioso líquido estocado nos aqüíferos Guarani e Amazônico. O problema é que a distribuição dessa água é extremamente desigual. A bacia do rio Amazonas – a maior bacia fluvial do mundo – concentra mais de 70% da água onde vivem apenas 8% da população brasileira. Já a região Sudeste, a mais populosa, que reúne 42% da população, tem apenas 6% da água. Além da geografia desigual, a água também é administrada de maneira sofrível por pessoas ou instituições sem competência técnica (ou a correta orientação política) para isso.
Segundo o “Atlas Brasil – abastecimento urbano de água : um diagnóstico dos mananciais superficiais e subterrâneos e sistemas de produção de água potável do país”, produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA), “55% dos municípios brasileiros (3.059) que respondem por 73% da demanda por água no país, precisam receber até 2015 investimentos em seus sistemas de produção de água ou mananciais que somam R$ 22 bilhões para evitar problemas no abastecimento”. Esse alerta ainda não mereceu por parte dos tomadores de decisão a devida atenção.

“Os países hoje em dia são avaliados pela forma como sabem usar a água, e não pelo que têm de água. Porque é mais importante hoje saber usar a água que se tem do que ostentar a abundância”, me disse certa vez em entrevista o saudoso professor de Hidrologia da USP, Aldo Rebouças, um dos maiores especialistas no assunto. Também ele denunciava com farta argumentação o uso insustentável de água nas lavouras, que consomem aproximadamente 70% de toda a água doce do país. Para o especialista, as técnicas normalmente empregadas de irrigação (inundação, pivô central ou aspersores) desperdiçam muita água sem necessidade.
Por tudo isso, chega em boa hora o alerta da ONU em um mundo onde na última década ascenderam à classe média aproximadamente 400 milhões de pessoas. O incremento do consumo trouxe junto a explosão de demanda da chamada água virtual, aquela que a gente não vê, mas está presente nos sapatos, roupas, carros, eletrodomésticos, computadores, televisões, enfim, tudo o que é produzido. Não há crescimento econômico possível sem muita água sustentando os indicadores de produção e de consumo. Embora a população cresça, e o número de consumidores também, o estoque de água doce do planeta permanece inalterado há milhões de anos. Sem a promoção do uso inteligente, a falta de água para suportar o crescimento da demanda deverá se tornar crônica.

Reduzir a poluição e o desperdício; promover a cultura do uso inteligente da água em todos os níveis; capacitar gestores, acelerar os investimentos e monitorar os resultados. As soluções estão ao nosso alcance. Resta fazer.
Fonte: http://g1.globo.com/platb/mundo-sustentavel/2013/01/28/alerta-vermelho-na-nave-azul/

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A civilização do lixo (1)

Entrevista de Graziela Wolfart a Maurício Waldman*
Fonte: IHU on-line. Texto condensado

De modo geral, como você define o problema do lixo na sociedade moderna?
Admite-se que atualmente exista um descarte mundial de 30 bilhões de toneladas de resíduos por ano. Os lixos já assumiram os contornos de uma calamidade civilizatória. Em termos mundiais, apenas a quantidade de refugos municipais coletados – estimada em 1,2 bilhões de toneladas – supera nos dias de hoje a produção global de aço, orçada em 1 bilhão de toneladas. Por sua vez, as cidades ejetam rejeitos – 2 bilhões de toneladas – que superam no mínimo em 20% a produção planetária de cereais, demonstrando que o mundo moderno gera mais refugo que carboidrato básico. Contudo, mesmo esta notável volumetria de resíduos parece não satisfazer a obsessão em maximizá-los. O resultado disso é uma autêntica cascata de lixos. Exemplificando, a população norte-americana cresceu quase 2,5 vezes entre 1960 e o ano 2000. Porém, o já magnânimo descarte dos Estados Unidos praticamente triplicou desde 1960. No ano 2020 a União Europeia estará descartando 45% mais rebotalhos do que em 1995. Na União Europeia, o lixo domiciliar se expandiu inclusive em países com evolução populacional pouco expressiva. No caso espanhol, sete anos (1996-2003), foram suficientes para incrementar os refugos em 40%.

E no Brasil, como se situa este problema?
O Brasil – ao lado de outras nações do hemisfério Sul – ocupa uma incômoda posição na questão dos refugos, tanto pelas proporções como pela média per capita. O lixo brasileiro supera a maioria das nações periféricas.  (Embora) corresponda a 3,06% da população mundial e 3,5% do PIB global, o Brasil é origem de um montante de 5,5% do total mundial dos resíduos sólidos urbanos. O país é um grande gerador mundial de lixo e deve assumir sua responsabilidade em contribuir para com a resolução do problema.

Quais os principais e mais urgentes desafios a serem enfrentados?
Precisamos adotar de verdade os famosos quatro “Rs” : repensar, reduzir, reutilizar e reciclar. A ordem de aplicação é exatamente essa, começando com repensar e terminando com reciclar. Repensar a sistemática de ejeção dos lixos é fundamental, pois é um tema também pavimentado por injunções sociais, políticas e culturais. O país vivencia nos últimos 20 anos uma escalada na desova de descartes de uma forma que não têm precedentes. Entre 1991 e 2000 a população brasileira cresceu 15,6%. Porém, o descarte de resíduos aumentou 49%. Em 2009 a população cresceu 1%, mas a produção de lixo cresceu 6%. A metrópole paulista constitui o terceiro polo gerador de lixo no globo. Perde apenas para Nova York e Tóquio. São Paulo não é a terceira economia metropolitana do planeta. É a 11ª ou 12ª. Gera-se muito mais lixo do que seria admissível a partir de um parâmetro eminentemente econômico.

Qual a relação entre a questão do lixo e o consumo (e a consequente geração de lixo) como indicativo de desenvolvimento?
A cultura organizacional da modernidade, cuja mola mestra são ritmos cada vez mais velozes impostos à produção, obrigatoriamente tem na reposição constante dos bens uma meta estratégica da sua reprodução material. Trata-se de conduzir o consumo para a satisfação de necessidades que não se justificam em si mesmas, mas prioritariamente constituem pressuposto para a produção. Validar o dinamismo do  implica promover o descarte contínuo dos bens, ejetados pelo carrossel do consumo. Na perspicaz argumentação de Abraham Moles , vivemos numa civilização consumidora que produz para consumir e cria para produzir, um ciclo onde a noção fundamental é a de aceleração. Consequentemente, quanto mais rápida for a substituição das mercadorias, tanto mais encorpado será o giro do capital. Quando antes e quanto mais os produtos se tornarem inúteis, tanto maiores serão os lucros. Ainda que a contrapartida seja sobre-explorar os recursos naturais e, é claro, maximizar a geração de lixo. Como seria possível arrematar, este conceito de economia é caduco, ambientalmente irresponsável e não tem condição nenhuma de manter continuidade. Ele se tornou uma ameaça para o futuro da espécie humana. Urge redirecionar a economia para outras vertentes: qualidade de vida, preservação ambiental, utilização racional dos recursos naturais, revisão do estilo de vida e da economia dos materiais.

O que deveria fazer parte de um plano de gestão de resíduos municipal ideal?
As pessoas imaginam que seja possível criar um “plano padrão” para a gestão dos resíduos. Isto é, um programa capaz de ser aplicado em qualquer contexto. Por exemplo, as cidades de Marabá (Pará), Presidente Prudente (São Paulo) e São Leopoldo (Rio Grande do Sul) possuem contingente populacional semelhante, em torno de 200 mil habitantes. Mas isso não significa que uma estratégia de gestão bem sucedida em São Leopoldo possa ser repetida em Marabá ou em Presidente Prudente. Então, é importante obter dados do perfil do lixo de cada cidade, país ou região, assim como as dinâmicas responsáveis pela ejeção de descartes e, na sequência, trabalhar com os aspectos sociais, econômicos e culturais envolvidos naquilo que se joga fora. Não existe lixo: existem lixos. Expressão plural e não singular. Outro aspecto essencial é mudar a visão tradicional que observa o lixo unicamente como um resultado. Na realidade, o lixo reporta a um processo, a um dinamismo cujo monitoramento não tem como ser bem sucedido atendo-se a ele enquanto um resultado final. Objetivamente, o importante é pensar as causas, origem dos problemas – e não o fim da linha.

Quais são os principais fatores que envolvem o gerenciamento do lixo no plano municipal?
Existem duas diretrizes matriciais: uma de índole filosófica, dos quatro “Rs” e outra, atinente aos aspectos logísticos de gestão do lixo. O lixo brasileiro, que é dotado de uma série de especificidades que devem estar colocadas no centro das atenções. Em nome dessas peculiaridades que o trabalho dos catadores deve, por exemplo, ser protegido, incentivado e valorizado pelas administrações municipais. Mas isso é o oposto do que acontece na maioria dos casos. Estigmatizados socialmente, o trabalho dos catadores – que corresponde a mais de 98% dos materiais encaminhados às recicladoras – segue, a despeito do seu enorme valor social e ambiental, repudiado, quando não hostilizado abertamente, pelas administrações municipais (..) Tal situação requer revisão imediata.


Como estes fatores então devem ser levados em consideração?
O problema do lixo pode, ao menos, ser mitigado com o concurso de procedimentos inteligentes e práticas ambientalmente corretas. O volume de detritos orgânicos no lixo domiciliar brasileiro pende entre 52% a 69,6% do total. Tal é a magnitude da fração úmida no lixo residencial. Normalmente, o sistema de limpeza urbana desova toda essa portentosa massa de sobras nos aterros. Mas existem outras soluções. Deveríamos priorizar a educação ambiental, trabalhar contra o desperdício. O Brasil está entre os dez países que mais jogam comida no lixo, com perda média de 35% da produção agrícola. Cada família brasileira desperdiça cerca de 20% dos alimentos que adquire no período de uma semana e a Companhia Nacional de Abastecimento – Conab estima perdas em grãos em torno de 10% da produção. Outras avaliações indicam que praticamente 64% do que é cultivado no país acaba lançado na lata de lixo. Isso é um contrassenso manifesto numa nação rotineiramente assediada por campanhas de combate à fome. Portanto, devemos atacar a raiz do problema e parar de pensar que gestão dos resíduos se resume a tirar saquinho da calçada. A gestão dos resíduos deve se situar antes do saquinho, e não depois dele (..)
O meio ambiente e as cidades lucrariam muito mais na hipótese de se universalizar a compostagem doméstica do que ficar investindo em caros sistemas de logística de coleta de resíduos, em aterros e incineradores. Com a adoção de minhocários domésticos, a redução do lixo orgânico pode alcançar a proporção de 95% do total. Isso significa que os gastos com coleta de lixo urbano podem retrair em até 50%. Consequentemente, haveria grande economia para o erário público, propiciando mais verba para saúde e educação. Mesmo que apenas uma parcela da população adote o sistema, ainda assim os ganhos seriam consideráveis.

*Maurício Waldman é escritor, professor universitário, pesquisador e consultor ambiental. Tem doutorado em Geografia pela USP. É pós-doutor pelo Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Unicam. Foi chefe da coleta seletiva de lixo da capital paulista e coordenador do meio ambiente em São Bernardo do Campo. É coautor de Lixo: cenários e desafios ( Cortez Editora, 2010).
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