Os
gestos e palavras do papa Francisco têm sido para nós uma surpresa de Deus.
Estilo de vida simples e frugal, proximidade às pessoas, liberdade diante das
próprias leis eclesiásticas, solidariedade com os pobres da Terra
(especialmente os refugiados), pregação com palavras acessíveis, criação de instâncias
participativas na Igreja, diálogo efetivo com outras Igrejas e religiões, apelo
para uma “Igreja em saída”, respeito às diversidades étnicas, culturais,
sexuais e de gênero, espiritualidade centrada no Deus misericordioso, sintonia
com a Vida Reigiosa Consagrada... Felizmente, poderíamos continuar a lista, e
teríamos muito a acrescentar.
Um dos presentes que ele brindou ao mundo foi a encíclica “Laudato Si’”, sobre o cuidado da Casa Comum. Acolhida com alegria e respeito por pesquisadores e membros de movimentos socioambientais de todo o mundo, por ecólogos e ecologistas, a encíclica não teve ainda o devido reconhecimento no seio da própria Igreja Católica. Talvez aconteça aquilo que o próprio Jesus viveu em Nazaré: um profeta não é bem aceito na sua cidade e no meio da parentela (cf. Mc 6,4s; Lc 4,24). Guardando as devidas proporções, a Laudato Si’ se assemelha a um tesouro escondido no campo, ou bela e preciosa pérola (Mt 13,44-46). Sendo uma atualização do Evangelho, constitui um Boa Nova oferecida a toda a humanidade, não somente aos católicos e demais cristãos. Mas precisa ser trazida à luz! Podemos descobrir muitos aspectos significativos na Laudato Si’. Vamos nos concentrar em um: a beleza do nosso Planeta e de Deus, que encanta e nos chama para cuidar da Casa Comum.
A
Laudato Si’ visa nos ajudar “a
reconhecer a grandeza, a urgência e a beleza
do desafio que temos pela frente. (LS 15)”, de garantir a sustentabilidade no
nossa Planeta. Ela foi elaborada com a contribuição de muitas pessoas, de
diversos campos do saber, como as ciências ambientais, a filosofia, a
sociologia e a teologia. Mostra-se muito precisa do ponto de vista conceitual,
o que é importante para conferir certa legitimidade, quando se trata de um tema
candente, vital para a humanidade, objeto de pesquisa de muitas ciências. Ao
mesmo tempo, é um texto tocante, que não se prende à frieza dos conceitos. Usando
analogias e expressões poéticas, Francisco nos aproxima da realidade mais
profunda do ser humano e do mundo, que os conceitos não conseguem abarcar.
A
encíclica se abre com uma pergunta: O que é a Terra para nós, a partir do olhar
de Francisco de Assis? Ela, nossa Casa Comum, “ora uma irmã, com quem
partilhamos a existência, ora uma mãe bela,
que nos acolhe nos seus braços” (LS 1). A expressão “Casa Comum” foi tomada do
movimento ecológico. Quer dizer: habitamos o Planeta junto com os seres
abióticos (água, ar, solo, energía do sol) e os seres vivos, desde os
microorganismos (protozoários, batérias e fungos), passando pelas plantas (das
gramíneas às gigantescas árvores da Amazônia), os insetos, os peixes e os
pássaros, até animais mamíferos superiores. Por isso, o nosso Planeta é também
uma irmã, pois partilhamos da vida com milhões de outras criaturas. A Terra,
como mãe, nos fornece os nutrientes para a existência. Dela vimos e ela nos
acolhe com carinho. Mais ainda, somos parte da Terra. Aqui se supera uma visão
limitada, de que a natureza estaria fora de nós. Diz o Papa: “nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído
pelos elementos do Planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água
vivifica-nos e restaura-nos” (LS 2).
Você
já pensou como reduzimos a outras criaturas a objetos? A começar das palavras que
utilizamos. Dizemos que uma árvore é uma coisa, enquanto ela na verdade é um
ser vivo. Coisas são uma mesa, uma bicicleta ou uma cadeira. E até estas são
mais do que objetos, pois algumas delas comportam valor simbólico e relacional.
Todos conhecemos a tradicional divisão do rosário, em mistérios gozosos,
luminosos, dolorosos e gloriosos. Utilizando esta analogia, em linguagem
poética, Francisco nos diz: “O mundo é algo mais
do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor.” (LS 12).
Afonso Murad - Parte do Artigo "Contemplar a beleza, zelar da Casa Comum", publicado na Revista Convergência, junho de 2017