terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Perspectivas escatológicas para o futuro do universo

No capítulo 5 de seu livro “Ciência e Sabedoria” (Ed. Loyola), Jürgen Moltmann aborda o tema das perspectivas escatológicas da teologia cristã para o futuro do universo. Ele pergunta: as escatologias humana e cósmica podem ainda hoje ser pensadas juntas e harmonizadas? Para dar uma resposta, o autor coloca a escatologia cristã, de forma crítica e autocrítica, no contexto da astrofísica moderna. Como nos capítulos anteriores, Moltmann segue a proposta da “teologia natural”, segundo a qual os conhecimentos natural-científicos nos dizem algo sobre Deus, e as visões teológicas algo sobre a natureza.
A teologia adquire horizonte escatológico a partir da experiência especial de Deus (root-experience), isto é, dos acontecimentos em que Deus se “revela” e que conferem às comunidades humanas sua identidade religiosa. Essas “experiências de raiz” contêm, desde o início, horizontes experienciais gerais e expectativas futuras universais, pois são experiências temporais do Deus eterno.
Para o judaísmo, a experiência raiz é o Êxodo, em cujo horizonte o Deus que liberta Israel é percebido como o “criador” de todas as coisas em todas as coisas. Essa crença na criação dessacralizou e desencantou o mundo, e também o abriu para a intervenção científica e técnica do ser humano. Já no cristianismo, a experiência raiz é Cristo, sua morte e ressurreição. Nesse horizonte, o Deus que tirou Cristo da morte é percebido não apenas como criador, mas como consumador de todas as coisas. Na compreensão do evento singular da ressurreição de Cristo já estava presente o horizonte escatológico universal. A nova criação já começa no meio da velha. O desenvolvimento da escatologia cristã representa as dimensões cósmicas do acontecimento Cristo.
As tradições bíblicas estão baseadas num princípio antrópico, quer dizer, na concepção do ser humano como centro da criação e na coincidência do fim deste mundo com o fim da humanidade. Mas, hoje sabemos que a humanidade como um todo é mortal e que o universo num futuro longínquo pode ser um universo sem pessoas. Essa constatação questiona o sentido da escatologia humana.
Se se introduz o princípio cósmico nessa antropologia, surge outra imagem. Vemos não apenas o universo no ser humano e o ser humano como o sistema supremo, complexo e autoconsciente que conhecemos, mas também o ser humano no universo e o universo como o mais amplo contexto para o desenvolvimento das possibilidades humanas. Nessa perspectiva, o futuro do universo não estaria atrelado ao futuro do ser humano, mas o futuro do ser humano é que seria integrado ao futuro do universo.
Atualmente, conscientemente ou não, o ser humano procura vencer a morte e viver o máximo possível, mas, um futuro infinito da vida e do universo como hoje os conhecemos, é realmente desejável? Se a morte e o tempo fossem superados, não haveria mais nada de novo, então, um mundo sem fim seria o fim do mundo.
As concepções de um “fim do mundo” pressupõem que este mundo é temporal e tem um começo e um fim com o tempo, que o universo está num movimento singular chamado “história”. Teologicamente, as concepções “milenaristas” do fim do mundo falam de uma meta (telos) do desenvolvimento do cosmos. Por outro lado, as concepções “apocalípticas” falam de um fim (finis) da história cósmica. Na escatologia cristã sempre está presente uma combinação de ambas as ideias, fim e começo, pois a escatologia só pode ser considerada cristã se se orienta pelo evento do Êxodo de Israel e pelo acontecimento de Cristo. O cativeiro de Israel e a morte de Cristo são protótipos da catástrofe. A saída para a liberdade da Terra Prometida e a ressurreição para a vida eterna do mundo vindouro são protótipos do novo começo.
A destruição do mundo (annihilatio mundi), pregada pelos luteranos no séc. XVII e pelos “aniquilacionistas” evangélicos modernos, anuncia a destruição como destino final do universo. Sua pregação diz que anjos e crentes se entregarão totalmente à visão beatífica de Deus “face a face”, de modo que não mais precisem deste mundo criado (2Pe 3,10.12; Ap 2,11; Ap 21,1). Em outras palavras, o fim da criação é um movimento da existência para o não-ser.
Por outro lado, a transformação do mundo (transformatio mundi) representa a expectativa teológica geral que espera a mudança do universo do estado agora observável para um estado qualitativamente novo. Pregada pelos calvinistas e a teologia católica da Idade Média, vê na fidelidade de Deus o fundamento transcendente da criação e a garantia divina de duração para o universo. A forma do velho mundo são pecado, morte e transitoriedade; a forma do novo mundo são justiça, vida eterna e imperecibilidade.
A deificação do cosmos (deificatio mundi) pregada pela teologia ortodoxa considera que a pessoa humana e a natureza da Terra formam uma unidade, portanto, o que é prometido à pessoa humana vale também para o planeta e o cosmos. Se a escatologia humana e a cósmica constituem uma unidade, não há futuro humano sem o futuro do universo. O cosmos é salvo se a humanidade é salva, e vice-versa.
A concepção escatológica do futuro do universo diferencia sua história em duas fases: o “tempo deste mundo” (tempo do mundo transitório) e o “tempo do mundo futuro” (tempo de um mundo permanente e eterno). Ela também distingue a realidade em “Terra” (mundo visível, singular) e “Céus” (mundo invisível, plural). O tempo da “Terra” é o chronos com sua estrutura temporal irreversível do vir-a-ser e do perecer; o tempo dos “Céus” é o aion, aevum com estrutura temporal reversível do círculo do tempo.
O ser eterno de Deus se distingue da terra e dos céus e seu tempo é a eternidade. Isso não quer dizer tempo sem fim, nem atemporalidade, mas potência temporal. A eternidade do Criador em si deve ser vista na anterioridade, simultaneidade e posterioridade dele. Sua eternidade se determina com poder do futuro para o tempo irreversível: há, por conseguinte, futuro passado, futuro presente e futuro futuro.
As consequências desses pressupostos para a compreensão do universo cientificamente explorável são:
a) Consequências negativas: o universo visível não é divino, não mostra qualidades divinas nem é celeste. É passageiro, temporal e contingente.
b) Consequências positivas: o universo visível é temporal, contingente e finito, mas tem um futuro eterno, permanente e infinito no universo futuro, novo. O mundo futuro, novo, trará aquilo de que sentimos falta neste mundo finito: a presença eterna de Deus e a participação nas qualidades dessa presença divina, ou seja, aquilo que tem sentido em si mesmo.
 Então, a passagem “deste mundo” para o “mundo futuro” é uma transformação universal “deste mundo” (Ap 21,4: “Eis que faço novas todas as coisas”). Tudo o que é criado, que foi, é e será aqui deverá ser feito “novo”. O mundo futuro, novo, eterno deve ser a nova criação deste mundo que conhecemos. Não se pode dizer quando isso acontecerá, pois esse momento escatológico precisa ser também o fim do tempo irreversível, não podendo portanto cair neste tempo. Ante a eternidade de Deus que aparece no momento escatológico, todos os tempos ficam simultâneos. O momento escatológico põe fim ao tempo linear e assume um elemento do tempo cíclico. Não ocorre um eterno retorno do mesmo, mas um retorno único de todas as coisas.
Esse modelo escatológico para o “futuro do universo” é o único modelo que percebe um futuro para o passado, exprime esperança para os mortos e descobre futuro para os diferentes estágios do universo.


Resumo de: MOLTMANN, Jürgen. Perspectivas escatológicas para o futuro do universo. In: ______. Ciência e sabedoria. São Paulo: Loyola, 2007. cap. 5, p. 95-114, como atividade de PIBIC, bolsa da FAPEMIG, realizado por Gonzalo Benavides Mesones, estudante de Teologia da FAJE, Faculdade Jesuíta.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Direitos cósmicos e espiritualidade

Marcelo Barros

Comumente, a sociedade dominante apresenta os Direitos Humanos apenas como campo de inviolabilidade individual. Nele se destacam os direitos liberais de ir, vir, comprar e consumir. Nas últimas décadas, quem mais invoca a Declaração dos Direitos Humanos são os impérios ocidentais. Eles insistem nesses direitos individuais, mas para tê-los o passaporte necessário é o dinheiro. Nesse tipo de sociedade, a pessoa só é cidadã se puder ganhar e consumir (..) Mesmo nos países que eles não invadem, violam a justiça internacional e patrocinam golpes e financiam os piores partidos políticos, sempre à sombra dos direitos humanos e até do nome de civilização cristã.
As antigas civilizações da Ásia, Oceania e África, assim como as comunidades índias e afrodescendentes da América insistem que os direitos não são apenas individuais e sim comunitários e coletivos. Também não isolam direitos humanos do cuidado com a mãe-terra, dos animais e de todos os seres vivos que se tornam assim, de alguma forma, sujeitos de direitos. É uma outra concepção de direitos humanos.

É dever das pessoas de bem, das comunidades e organizações sociais incorporar em seu trabalho essas concepções contra hegemônicas e alternativas dos Direitos Humanos. O amor incondicional e solidário nos leva a assumir a responsabilidade ética pelos mais frágeis e marginalizados por essa sociedade cruel. No entanto, além de solidarizar-se à luta dos lavradores, índios, negros, mulheres oprimidas e todas as categorias de alguma forma vítimas da sociedade excludente, essa solidariedade nos leva a um novo modo de pensar e viver a relação com a Terra, a água, a natureza, os animais e todo ser vivo. Também, a Terra, as águas, os animais e as plantas precisam ser cuidados e defendidos. Não podemos tratá-los como se fossem meras mercadorias. Conosco eles formam uma grande teia de relação que é como uma comunidade: a comunhão da vida.

Esse modo de viver e compreender a vida e os direitos humanos faz parte de uma cultura amorosa que compreende e pratica a Espiritualidade como forma de viver plenamente humana e humanizadora. As tradições religiosas têm como missão ajudar as pessoas a aprofundar esse sentido mais profundo da vida. Infelizmente, ainda há muita gente que confunde Espiritualidade com Espiritualismo e trata a fé como se se tratasse de um assunto meramente íntimo da relação livre do fiel com uma divindade. A mística francesa Simone Weil afirmava: "Eu reconheço quem é de Deus não quando me fala de Deus, mas pelo seu modo de tratar as outras pessoas”.


Todas as religiões, de uma forma ou de outra, reconhecem: o divino só pode ser encontrado realmente no humano. A espiritualidade, religiosa ou não, faz da defesa dos direitos do ser humano e da natureza um método de intimidade com o Divino, presente no mundo. No século II, Irineu, pastor da Igreja de Lyon, ensinava: "Como você poderá divinizar-se se ainda nem se tornou humano? Antes de tudo, garanta a condição de ser humano e, assim, poderá participar da glória divina”.