terça-feira, 15 de abril de 2014

A paz perene com a Mãe Terra

Leonardo Boff

Um dos legados mais fecundos de Francisco de Assis e atualizado por Francisco de Roma é a pregação da paz, tão urgente nos dias atuais. A primeira saudação que São Francisco dirigia aos que encontrava era desejar “Paz e Bem” que corresponde ao Shalom bíblico. A paz que ansiava não se restringia às relações inter-pessoais e sociais. Buscava uma paz perene com todos os elementos da natureza, tratando-os com o doce nome de irmãos e irmãs.

Especialmente a "irmã e Mãe Terra”, como dizia, deveria ser abraçada pelo amplexo da paz. Seu primeiro biógrafo Tomás de Celano resume maravilhosamente o sentimento fraterno do mundo que o invadia ao testemunhar: “Enchia-se de inefável gozo todas as vezes que olhava o sol, contemplava a lua e dirigia sua vista para as estrelas e o firmamento. Quando se encontrava com as flores, pregava-lhes como se fossem dotadas e inteligência e as convidava a louvar a Deus. Fazia-o com terníssima e comovedora candura: exortava à gratidão os trigais e os vinhedos, as pedras e as selvas, a plantura dos campos e as correntes dos rios, a beleza das hortas, a terra, o fogo, o ar e o vento”.

Esta atitude de reverência e de enternecimento levava-o a recolher as minhocas dos caminhos para não serem pisadas. No inverno dava mel às abelhas para que não morressem de escassez e de frio. Pedia aos irmãos que não cortassem as árvores pela raiz, na esperança de que pudessem se regenerar. Até as ervas daninhas deveriam ter um lugar reservado nas hortas, para que pudessem sobreviver, pois “elas também anunciam o formosíssimo Pai de todos os seres”.
Só pode viver esta intimidade com todos os seres quem escutou sua ressonância simbólica dentro da alma, unindo a ecologia ambiental com a ecologia profunda; jamais se colocou acima das coisas, mas ao pé delas, verdadeiramente como quem convive como irmão e irmã, descobrindo os laços de parentesco que une a todos.

O universo franciscano e ecológico nunca é inerte nem as coisas estão jogadas aí, ao alcance da mão possessora do ser humano ou justapostas uma ao lado da outra, sem interconexões entre elas. Tudo compõe uma grandiosa sinfonia cujo maestro é o próprio Criador. Todas são animadas e personalizadas; por intuição descobriu o que sabemos atualmente por via científica (Crick e Dawson, os que decifraram o DNA) que todos os viventes somos parentes, primos, irmãos e irmãs, por possuirmos o mesmo código genético de base. Francisco experimento espiritualmente esta consanguinidade. Desta atitude nasceu uma imperturbável paz, sem medo e sem ameaças, paz de quem se sente sempre em casa com os pais, os irmãos e as irmãs.

São Francisco realizou plenamente a esplêndida definição que a Carta da Terra encontrou para a paz: “é aquela plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com as outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual somos parte”(n.16 f). O Papa Francisco parece ter realizado as condições para a paz que irradia.
A suprema expressão da paz, feita de convivência fraterna e acolhida calorosa de todas as pessoas e coisas é simbolizada pelo conhecido relato da perfeita alegria. Através de um artifício da imaginação, Francisco apresenta todo tipo de injúrias e violências contra dois confrades (um deles é ele próprio, Francisco). Encharcados de chuva e de lama, chegam, exaustos, ao convento. Aí são rechaçados a bastonadas (“batidos com um pau de nó em nó”) pelo frade porteiro. Embora tenham sido reconhecidos como confrades, são vilipendiados moralmente e rejeitados como gente de má fama.

No relato da perfeita alegria, que encontra paralelos na tradição budista, Francisco vai, passo a passo, desmontando os mecanismos que geram a cultura da violência. A verdadeira alegria não está na autoestima, nem na necessidade de reconhecimento, nem em fazer milagres e falar em línguas. Em seu lugar, coloca os fundamentos da cultura da paz: o amor, a capacidade de suportar as contradições, o perdão e a reconciliação para além de qualquer pressuposição ou exigência prévia. Vivida esta atitude, irrompe a paz que é uma paz interior inalterável, capaz de conviver jovialmente com as mais duras oposições, paz como fruto de completo despojamento. Não são essas as primícias de um Reino de justiça, de paz e de amor que tanto desejamos?

Esta visão da paz de São Francisco representa  outro modo de ser-no-mundo, uma alternativa ao modo de ser da modernidade e das pós-modernidade, assentado sobre a posse e o uso desrespeitoso das coisas para o desfrute humano sem qualquer outra consideração.
Embora tenha vivido há mais de oitocentos anos, novo é ele e não nós. Nós somos velhos e envelhecidos que com a nossa voracidade estamos destruindo as bases que sustentam a vida em nosso planeta e pondo em risco o nosso futuro como espécie. A descoberta da irmandade cósmica nos ajudará a sair da crise e nos devolverá a inocência perdida que é a claridade infantil da idade adulta.

Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2014/04/12/a-paz-perene-com-a-natureza-e-a-mae-terra-2/

sábado, 5 de abril de 2014

Bem Viver: nova forma de existência e de organização da sociedade

De acordo com David Choquehuanca, especialista em cosmovisão andina, o Viver Bem (ou Bem Viver) é um processo que está apenas começando e que pouco a pouco irá se massificando. “Para os que pertencem à cultura da vida, o mais importante não é o dinheiro nem o ouro, nem o ser humano, porque ele está em último lugar. O mais importante são os rios, o ar, as montanhas, as estrelas, as formigas, as borboletas (...) O ser humano está em último lugar. Mas, para nós o mais importante é a vida”.

(1) O Viver Bem dá prioridade à natureza mais que ao ser humano
Estas são as características que pouco a pouco serão implementadas no novo Estado Plurinacional
Priorizar a vida: Viver Bem é buscar a vivência em comunidade, onde todos os integrantes se preocupam com todos. O mais importante não é o ser humano (como afirma o socialismo) nem o dinheiro (como postula o capitalismo), mas a vida. Pretende-se buscar uma vida mais simples. Que seja o caminho da harmonia com a natureza e a vida, com o objetivo de salvar o planeta e dar a prioridade à humanidade.
Obter acordos consensuados: Viver Bem é buscar o consenso entre todos, o que implica que mesmo que as pessoas tenham diferenças, na hora de dialogar se chegue a um ponto de neutralidade em que todas coincidam e não se provoquem conflitos. “Não somos contra a democracia, mas o que faremos é aprofundá-la, porque nela existe também a palavra submissão e submeter o próximo não é viver bem”.
Respeitar as diferenças: Viver Bem é respeitar o outro, saber escutar todo aquele que deseja falar, sem discriminação ou qualquer tipo de submissão. Não se postula a tolerância, mas o respeito, já que, mesmo que cada cultura ou região tenha uma forma diferente de pensar, para viver bem e em harmonia é necessário respeitar essas diferenças. Esta doutrina inclui todos os seres que habitam o planeta, como os animais e as plantas.
Viver em complementaridade: Viver Bem é priorizar a complementaridade, que postula que todos os seres que vivem no planeta se complementam uns com os outros. Nas comunidades, a criança se complementa com o avô, o homem com a mulher, etc. O homem não deve matar as plantas, porque elas complementam a sua existência e ajudam para que sobreviva.
Equilíbrio com a natureza: Viver Bem é levar uma vida equilibrada com todos os seres dentro de uma comunidade. Assim como a democracia, a justiça também é considerada excludente, porque só leva em conta as pessoas dentro de uma comunidade e não o que é mais importante: a vida e a harmonia do ser humano com a natureza. É por isso que Viver Bem aspira a ter uma sociedade com equidade e sem exclusão.
Defender a identidade: Viver Bem é valorizar e recuperar a identidade. Dentro do novo modelo, a identidade dos povos é muito mais importante do que a dignidade. A identidade implica em desfrutar plenamente de uma vida baseada em valores que resistiram mais de 500 anos (desde a conquista espanhola) e que foram legados pelas famílias e comunidades que viveram em harmonia com a natureza e o cosmos.

(2) Um dos principais objetivos do Viver Bem é retomar a unidade de todos os povos
O saber comer, beber, dançar, comunicar-se e trabalhar também são alguns aspectos fundamentais.
Aceitar as diferenças: Viver Bem é respeitar as semelhanças e diferenças entre os seres que vivem no mesmo planeta. Ultrapassa o conceito da diversidade. “Não há unidade na diversidade, mas é semelhança e diferença, porque quando se fala de diversidade só se fala de pessoas. Esta colocação se traduz em que os seres semelhantes ou diferentes jamais devem se ofender.
Priorizar direitos cósmicos: Viver Bem é dar prioridade aos direitos cósmicos antes que aos Direitos Humanos. Quando o Governo fala de mudança climática, também se refere aos direitos cósmicos “Por isso Evo Morales diz que será mais importante falar sobre os direitos da Mãe Terra do que falar sobre os direitos humanos”.
Saber comer: Viver Bem é saber alimentar-se, saber combinar os alimentos adequados a partir das estações do ano (alimentos de acordo com a época). Esta consigna deve se reger com base na prática dos ancestrais que se alimentam com um determinado produto durante toda a estação. Comenta que alimentar-se bem garante boa saúde.
Saber beber: Viver Bem é saber beber álcool com moderação. Nas comunidades indígenas cada festa tem um significado e o álcool está presente na celebração, mas é consumido sem exageros ou ofender alguém. “Temos que saber beber; em nossas comunidades tínhamos verdadeiras festas que estavam relacionadas com as estações do ano. Não é ir a uma cantina e se envenenar com cerveja e matar os neurônios”.
Saber dançar: Viver Bem é saber dançar [danzar], não simplesmente saber bailar [bailar]. A dança se relaciona com alguns fatos concretos, como a colheita ou o plantio. As comunidades continuam honrando com dança e música a Pachamama, principalmente em épocas agrícolas; entretanto, nas cidades as danças originárias são consideradas expressões folclóricas. Na nova doutrina se renovará o verdadeiro significado do dançar.
Saber trabalhar: Viver Bem é considerar o trabalho como festa. “O trabalho para nós é felicidade”. Ao contrário do capitalismo onde se paga para trabalhar, no novo modelo do Estado Plurinacional, se retoma o pensamento ancestral de considerar o trabalho como festa. É uma forma de crescimento, é por isso que nas culturas indígenas se trabalha desde pequeno.
Retomar o Abya Yala: Viver bem é promover a união de todos os povos em uma grande família. Isto implica em que todas as regiões do país se reconstituam no que ancestralmente se considerou como uma grande comunidade. “Isto tem que se estender a todos os países. É por isso que vemos bons sinais de presidentes que estão na tarefa de unir todos os povos e voltar a ser o Abya Yala que fomos”.
Reincorporar a agricultura: Viver Bem é reincorporar a agricultura às comunidades. Parte desta doutrina do novo Estado Plurinacional é recuperar as formas de vivência em comunidade, como o trabalho na terra, cultivando produtos para cobrir as necessidades básicas para a subsistência. Neste ponto se fará a devolução de terras às comunidades, de maneira que se produzam as economias locais.
Saber se comunicar: Viver Bem é saber se comunicar. No novo Estado Pluninacional se pretende retomar a comunicação que existia nas comunidades ancestrais. O diálogo é o resultado desta boa comunicação. “Temos que nos comunicar como antes os nossos pais o faziam, e resolviam os problemas sem que se apresentassem conflitos, não temos que perder isso”.

(3) O Viver Bem não é “viver melhor”, como propugna o capitalismo
Entre os preceitos estabelecidos pelo novo modelo do Estado Plurinacional, figuram o controle social, a reciprocidade e o respeito à mulher e ao idoso.
Controle social: Viver Bem é realizar um controle obrigatório entre os habitantes de uma comunidade. “Este controle é diferente do proposto pela Participação Popular, que foi rechaçado (por algumas comunidades) porque reduz a verdadeira participação das pessoas”. Nos tempos ancestrais, “todos se encarregavam de controlar as funções que suas principais autoridades realizavam”.
Trabalhar em reciprocidade: Viver Bem é retomar a reciprocidade do trabalho nas comunidades. Nos povos indígenas esta prática se denomina ayni, que não é mais do que devolver em trabalho a ajuda prestada por uma família em uma atividade agrícola, como o plantio ou a colheita. “É mais um dos princípios ou códigos que garantirão o equilíbrio nas grandes secas”, explica o Ministro das Relações Exteriores.
Não roubar e não mentir: Viver Bem é basear-se no ama suwa e ama qhilla (não roubar e não mentir, em quéchua). É fundamental que dentro das comunidades se respeitem estes princípios para conseguir o bem-estar e confiança em seus habitantes. “Todos são códigos que devem ser seguidos para que consigamos viver bem no futuro”.
Proteger as sementes: Viver Bem é proteger e guardar as sementes para que no futuro se evite o uso de produtos transgênicos. Uma das características deste novo modelo é preservar a riqueza agrícola ancestral com a criação de bancos de sementes que evitem a utilização de transgênicos para incrementar a produtividade, porque se diz que esta mistura com químicos prejudica e acaba com as sementes milenares.
Respeitar a mulher: Viver Bem é respeitar a mulher, porque ela representa a Pachamama, que é a Mãe Terra que tem a capacidade de dar vida e de cuidar de todos os seus frutos. Por estas razões, dentro das comunidades, a mulher é valorizada e está presente em todas as atividades orientadas à vida, à criação, à educação e à revitalização da cultura. Os moradores das comunidades indígenas valorizam a mulher como base da organização social, porque transmitem aos seus filhos os saberes de sua cultura.
Viver Bem e NÃO melhor: Viver Bem é diferente de viver melhor, o que se relaciona com o capitalismo. Para a nova doutrina do Estado Plurinacional, viver melhor se traduz em egoísmo, desinteresse pelos outros, individualismo e pensar somente no lucro. Considera que a doutrina capitalista impulsiona a exploração das pessoas para a concentração de riquezas em poucas mãos, ao passo que o Viver Bem aponta para uma vida simples, que mantém uma produção equilibrada.
Recuperar recursos: Viver Bem é recuperar a riqueza natural do país e permitir que todos se beneficiem desta de maneira equilibrada e equitativa. A finalidade da doutrina do Viver Bem também é a de nacionalizar e recuperar as empresas estratégicas do país no marco do equilíbrio e da convivência entre o ser humano e a natureza em contraposição à exploração irracional dos recursos naturais.
Exercer a soberania: Viver Bem é construir, a partir das comunidades, o exercício da soberania no país. Isto significa que se chegará a uma soberania por meio do consenso comunal que defina e construa a unidade e a responsabilidade a favor do bem comum, sem que nada falte. Nesse marco, se reconstruirão as comunidades e nações para construir uma sociedade soberana que será administrada em harmonia com o indivíduo, a natureza e o cosmos.
Aproveitar a água: Viver Bem é distribuir racionalmente a água e aproveitá-la de maneira correta. A água é o leite dos seres que habitam o planeta. “Temos muitas coisas, recursos naturais, água e, por exemplo, a França não tem a quantidade de água nem a quantidade de terra que há em nosso país, mas vemos que não há nenhum Movimento Sem Terra, assim que devemos valorizar o que temos e preservá-lo o melhor possível, isso é Viver Bem”.
Escutar os anciãos: Viver Bem é ler as rugas dos avós para poder retomar o caminho. Uma das principais fontes de aprendizagem são os anciãos das comunidades, que guardam histórias e costumes que com o passar dos anos vão se perdendo. “Nossos avós são bibliotecas ambulantes, assim que devemos aprender com eles”, menciona. Portanto, os anciãos são respeitados e consultados nas comunidades indígenas do país.

Fonte: Dossiê Bem-viver, ISER Assessoria e IHU.