quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Criação e cuidado da vida na ótica sapiencial

Delir Brunelli – Teóloga da Equipe de reflexão teológica da CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil)
A espiritualidade profética destaca a presença salvífica de Deus na história. Já a espiritualidade sapiencial dá ênfase à manifestação divina através da criação e do governo do universo. Há uma série de textos que elogiam a “obra do Artista”; outros mostram como através dela Deus se faz conhecer e dita suas leis à família humana. Não se trata apenas de ver a criação como caminho para ir a Deus, mas de experimentar a realidade criada como presença de Deus.
Esta experiência não exclui a história, pois a criação é vista como o ponto de partida do plano de Deus, o primeiro dos grandes feitos salvíficos (Sl 136). Mais tarde, a carta aos Romanos vai dizer que toda a humanidade pode chegar a Deus, pois “desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, tais como seu poder eterno e sua divindade, podem ser contempladas, através da inteligência, nas obras que ele realizou” (1,20). Essas obras abarcam criação e história. A nova criação vai fechar este ciclo, quando o desígnio de Deus se realizar por completo.
A defesa e o cuidado da vida estão muito presentes na espiritualidade sapiencial. A vida humana, com suas necessidades básicas, mas também a vida das outras criaturas, pois há uma ligação íntima entre todos os seres vivos que habitam a terra. Javé é “amigo da vida”. Ele ama tudo o que criou, pois se não amasse alguma de suas criaturas ela deixaria de existir (Sb 11,24-26). Aos seres humanos Javé concedeu o conhecimento e lhes deu como herança “a lei da vida”. Pediu que se guardassem de toda injustiça e “ordenou que cada um se preocupasse com o próximo” (Eclo 17,9.12). Esse cuidado deve ser especial quando se trata dos pobres, daqueles que são injustiçados e não têm defesa, dos que se sentem fracos diante da astúcia e da violência. A vida deles é valiosa aos olhos de Javé! (Sl 72,12-14).
A atual crise ecológica desafia nossa fé e nos pede um novo olhar sobre a criação, o que pode ser favorecido pela contemplação sapiencial. Seria ingênuo e irresponsável apenas admirar a beleza do universo ou exaltar a harmonia de suas leis. Parafraseando o salmista, podemos perguntar: Como cantar as maravilhas da criação se a Mãe Terra está doente e a vida que ela gerou corre perigo? (Sl 137,4). Na realidade atual, contemplar a criação significa também sentir seus gemidos e comungar seus anseios (Rm 8,19-22), criando novos hábitos de vida e assumindo essa causa como integrante da nossa missão.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O que é sustentabilidade?

Há hoje um conflito entre as várias compreensões do que seja sustentabilidade. Clássica é a definição da ONU, do relatório Brundland, (1987) “desenvolvimento sustentável é aquele que atende as necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem a suas necessidades e aspirações”. Esse conceito é correto mas possui duas limitações: é antropocêntrico (só considera o ser humano) e nada diz sobre a comunidade de vida (outros seres vivos que também precisam da biosfera e de sustentabilidade).Tentarei uma formulação, o mais integradora possível: Sustentabilidade é toda ação destinada a manter as condições energéticas, informaconais, físico-químicas que sustentam todos os seres, especialmente a Terra viva, a comunidade de vida e a vida humana, visando a sua continuidade e ainda a atender as necessidades da geração presente e das futuras de tal forma que o capital natural seja mantido e enriquecido em sua capacidade de regeneração, reprodução, e coevolução.

Expliquemos, rapidamente, os termos desta visão holística:
* Sustentar todas as condições necessárias para o surgimento dos seres: estes só existem a partir da conjugação das energias, dos elementos físico-químicos e informacionais que, combinados entre, si dão origem a tudo.
* Sustentar todos os seres: aqui se trata de superar radicalmene o antropocentrismo. Todos os seres constituem emergências do processo de evolução e gozam de valor intrínseco, independetente do uso humano.
* Sustentar especialmente a Terra viva: a Terra é mais que uma “coisa” (res extensa), sem inteligência ou um mero meio de produção. Ela não contém vida. Ela mesma é viva, se autoregula, se regenera e evolui. Se não garantirmos a sustentabilidade da Terra viva, chamada Gaia, tiramos a base para todas as demais formas de sustentabilidade.
* Sustentar também a comunidade de vida: não existe, o meio ambiente, como algo secundário e periférico. Nós não existimos: coeexistimos e somos todos interdependentes. Todos os seres vivos são portadores do mesmo alfabeto genético básico. Formam a rede de vida, incluindo os microorganismos. Esta rede cria os biomas e a biodiversidade e é necessária para a subsistência de nossa vida neste planeta.
* Sustentar a vida humana: somos um elo singular da rede da vida, o ser mais complexo de nosso sistema solar e a ponta avançada do processo evolutivo por nós conhecido, pois somos portadores de consciência, de sensibilidade e de inteligência. Sentimos que somos chamados a cuidar e guardar a Mãe Terra, garantir a continuidade da civilização e vigiar também sobre nossa capacidade destrutiva.
* Sustentar a continuidade do processo evolutivo: os seres são conservados e suportados pela Energia de Fundo ou a Fonte Originária de todo o Ser. O universo possui um fim em si mesmo, pelo simples fato de existir, de continuar se expandindo e se autocriando.
* Sustentar o atendimento das necessidades humanas: fazemo-lo através do uso racional e cuidadoso dos bens e serviços que o cosmos e a Terra nos oferecem sem o que sucumbiríamos.
* Sustentar a nossa geração e aquelas que seguirão à nossa: a Terra é suficiente para cada geração desde que esta estabeleça uma relação de sinergia e de cooperação com ela e distribua os bens e serviços com equidade. O uso desses bens deve se reger pela solidariedade generacional. As futuras gerações tem o direito de herdarem uma Terra e uma natureza preservadas.

A sustentabilidade se mede pela capacidade de conservar o capital natural, permitir que se refaça e ainda, através do gênio humano, possa ser enriquecido para as futuras gerações. Esse conceito ampliado e integrador de sustentabilidade deve servir de critério para avaliar o quanto temos progredido ou não rumo à sustentabilidade e nos deve igualmente servir de inspiração ou de idéia-geradora para realizar a sustantabilidade nos vários campos da atividade humana. Sem isso a sustentabilidade é pura retórica sem consequências.
Fonte: http://www.leonardoboff.wordpress.com/

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O cântico da fraternidade cósmica


Se queremos conhecer em profundidade e autenticidade a vida, a mística e o espírito de São Francisco, precisamos recorrer a uma das suas mais belas composições: o “Cântico do Irmão Sol”, uma das primeiras obras primas escritas em língua italiana antiga.
São Francisco, antes da sua conversão, era o chefe de um grupo de jovens e barulhentos trovadores da sua cidade natal. O ambiente do século em que ele viveu era marcado pela poesia e pela música da cavalaria, que, mais tarde, resultarão na lenda do Rei Artur e seus cavaleiros. Esse espírito cavalheiresco e de trovador não foi abandonado por Francisco após a sua conversão. Pelas ruas de Assis e dos burgos da região, ele, juntamente com seus companheiros, cantava louvores a Deus, chamando os seus ouvintes à conversão.
O Cântico do Irmão Sol carrega esse espírito trovador de Francisco. Entretanto, para conhecermos em profundidade o espírito presente nos versos desse cântico, é importante conhecermos o contexto em que ele foi gestado.

O Cântico do Sol é um cântico à luz. Mas esse cântico jorrou da noite mais escura e profunda. O período em que o Cântico do Irmão Sol começou a ser redigido foi um tempo particularmente difícil para Francisco. Dois anos antes de sua morte, após receber os estigmas do crucificado no monte Alverne, Francisco fez-se transportar até São Damião, local de moradia de Clara e suas irmãs. A própria Clara preparou-lhe uma palhoça com caniços e ramagem para protegê-lo da luz do dia. Uma doença dos olhos contraída durante sua estadia no oriente já o havia feito perder praticamente toda a visão. Nessa palhoça, Francisco passou mais de cinqüenta dias sem poder suportar a luz do sol ou do fogo à noite, com muito sofrimento causado pela sua doença. Nos raros momentos em que a dor lhe dava descanso e que ele conseguia dormir um pouco, eram tantos os ratos que corriam sobre ele que não conseguia descansar. Mesmo durante o dia e nos momentos de oração, os ratos não lhe davam descanso.

Foi nesse ambiente que Francisco começou a compor o seu Cântico do Irmão Sol, depois de receber a certeza de que participaria do reino celeste. Compôs os versos e a melodia para os mesmos, que ensinou aos seus irmãos. Instruiu esses mesmos irmãos a cantarem o cântico quando fossem pelo mundo e que o cantassem depois das pregações. Dizia que “Ao nascer do sol, deviam todos louvar a Deus por ter criado este astro, que durante o dia fornece luz aos nossos olhos; assim também, quando anoitece, todos deviam louvar a Deus por essa criatura, o nosso irmão fogo, que nos alumia os nossos olhos. Por isso nós devíamos, por estas e pelas outras criaturas que usamos todos os dias, louvar sempre o seu glorioso Criador”. Nos momentos em que estava mais atormentado pelas suas enfermidades, ele começava a entoar o cântico e pedia aos irmãos que prosseguissem. E assim foi até a hora da sua morte.
Essa capacidade de louvar o sol, a luz e as demais criaturas, mesmo sem poder contemplá-las, resulta da pacificação que foi sendo operada na vida de Francisco desde a sua conversão. Francisco é uma pessoa reconciliada com a sua própria humanidade, com os seus limites, com os seus medos. E porque há essa reconciliação interior, todas as demais criaturas são vistas como irmãs, fráteres, sorelas. Por isso Francisco pode cantar: amo irmã Clara, amo o irmão sol, amo o irmão fogo, amo o irmão verme. E foi dessa fraternidade ecológica que nasceu um dos mais belos escritos místico-ecológico do ocidente: o Cântico do Irmão Sol.

“Altíssimo, onipotente e bom Senhor, vossos são o louvor, a glória, a honra e toda bênção”. Assim Francisco inicia seu Cântico do Irmão Sol, afirmando já no início o sentido e a fonte de todo o louvor que se seguirá. Somente Deus é digno de ser louvado. Reaparece aqui mais uma vez a reação de Francisco contra o desejo latente que existe no ser humano de apropriação. Nada nos pertence e tudo pertence a Deus e somente a ele é devido o louvor. Na raiz da violência contra a vida de todas as criaturas está esse desejo que faz com que o ser humano disponha das demais vidas humanas e sacrifique o planeta de forma inconseqüente com as gerações que nos sucederão.
Mas, Francisco dá-se conta de que nem mesmo é possível louvar a Deus, pois “homem algum é digno de vos mencionar”. É então que ele se volta para toda a criação, espelho da bondade desse mesmo Deus. Há, primeiramente, um movimento em direção ao alto, que parece arrancar o homem da terra, distanciando-o das demais realidades terrenas. Mas, esse movimento de ascensão tomará, ao longo das demais estrofes, a direção horizontal da fraternidade com as criaturas.

Três pares aparecerão dispostos lado a lado ao longo do cântico: o sol e a lua, o vento e a água, o fogo e a terra. Há aqui um sentido de totalidade, sinal da integração daquela ecologia interior já referida anteriormente: três pares de elementos, entre os quais figuram os quatro elementos tidos como essenciais pela filosofia e mentalidade de então (ar, água, fogo e terra). As criaturas, transformadas em freis e irmãs – integração do masculino e do feminino, – são convidadas a louvar a Deus, de quem procede todo o bem.
A pessoa de Jesus aparece de forma implícita no cântico através de três elementos: do sol, figura de raízes bíblicas para indicar o messias esperado; através das trinta e três linhas do cântico original, referência à idade de Cristo no momento de sua morte; e através do confronto das primeiras com as últimas palavras do cântico: Jesus é o altíssimo que se fez humilde, é o onipotente que se fez servo de todos.

É importante notar que Francisco sabe reconhecer a utilidade de todas as criaturas, mas essa utilidade assume um caráter bem diferente do utilitarismo moderno que depreda a natureza em função de um suposto bem estar da humanidade. O sol é útil porque clareia o dia e nos ilumina; a água é útil e preciosa porque sacia a sede do homem e da terra, que por sua vez produz frutos, ervas e flores para os animais e para o ser humano; a lua e as estrelas no céu despertam no humano o sentimento do belo, da poesia.
O cântico prossegue convocando o homem e a mulher a louvarem a Deus através da reconciliação e da paz, que constituem o verdadeiro louvor para Francisco. Essa penúltima estrofe não fazia parte do cântico original. Foi acrescentada por Francisco em julho de 1226 para buscar a reconciliação entre o bispo e o podestá (o prefeito) de Assis. O bispo havia excomungado o podestá, que por sua vez, decretou que nenhum cidadão de Assis podia ter com ele qualquer relação comercial ou legal. Francisco pediu que ambos se reunissem no palácio do bispo e, quando lá se encontravam, dois frades levantaram-se e cantaram o cântico como Francisco lhes havia ordenado. Foi o suficiente ambos se reconciliarem e evitar uma guerra civil na cidade.

Como os demais elementos do cântico, o humano aparece em par com um segundo elemento. Reconciliado com todas as criaturas e com o seu semelhante, resta a Francisco e à humanidade a reconciliação definitiva com a morte, companheira inseparável do ser humano e de toda forma de vida. Este último verso do cântico foi composto no princípio de Outubro de 1226, poucos dias antes de sua própria morte. Quando sentiu-a próxima, pediu que o despissem e o colocassem nu sobre a terra que ele havia cantado como irmã e mãe. Nu sobre a terra, Francisco manifestou a radical condição humana face ao Absoluto, diante do qual nos apresentamos despidos de nossas máscaras, revestidos apenas com nossa pobreza. Mas esse gesto possui também um outro significado não menos importante: a reconciliação e o retorno do humano ao útero materno da terra, de Gaia.

E assim, cantando, Francisco morreu. Deixou-nos na saudade e na orfandade. Mas também herdeiros de uma riqueza místico-ecológica que pode ajudar a humanidade a sair do caminho da autodestruição em que tem enveredado.