Eduardo Hoonaert
Muitos de nós pensam que a
tecnologia é ‘neutra’ e não tem nada a ver com violência. Mas quem estuda a
história pensa diferente. Basta contemplar a história do Brasil, de Cuba, do
sul dos Estados Unidos e de Colômbia, para verificar como a simples tecnologia
de transformar cana de açúcar em tabletes de rapadura (açúcar não refinado)
está na origem do tráfico negreiro e das misérias da escravidão, que perduram
até hoje.
Como o tema é pouco conhecido e
de grande importância, a presente contribuição na série ‘violência’ será um
pouco mais comprida que as anteriores e vai se desdobrar em dois textos. Vou me
concentrar numa história concreta: a história da produção tecnológica de
tecidos a partir de algodão. Isso pelo seguinte motivo: três anos atrás, o escritor
americano Sven Beckert publicou um livro impressionante, que demonstra como a
tecnologia do algodão mudou, nos últimos séculos, a face do mundo. O título do
livro é Empire of Cotton (Vintage Books, New York, 2015) e mostra como o
‘império inglês’, na realidade, é o ‘império do algodão’. Pelo que me consta, o
livro não foi traduzido ao português. Nele se pode ler, a partir do exemplo da
tecnologia do algodão, como se deu o surgimento e o crescimento do capitalismo
industrial, a lógica da agricultura industrial e das multinacionais de
alimentos etc.
Ao longo de milhares de anos, os
povos cultivam seu algodão em equilíbrio com as lavouras de alimentos. Há um
equilíbrio. Como se entende então que, a partir do final do século XVIII,
depois de muitos milhares de anos de crescimento econômico lento em toda a
humanidade, algumas partes dessa humanidade repentinamente se tornam muito
ricas, enquanto outras mergulham na pobreza? Eis o que a história do algodão
industrial mostra, pois ela marca o início da Revolução Industrial. Embora, na
atualidade, a indústria de algodão tenha sido ultrapassada por outras
indústrias, o produto continua a ser importante para o emprego e o comércio
mundiais. A produção mundial, em 2013, foi de 123 milhões de fardos, cada um
com cerca de 180 quilos, suficientes para 20 camisetas por pessoa.
Estima-se que, já em 1621, a
Companhia das Índias Orientais – criada pelos ingleses em 1600 – importou cerca
de 50 mil peças de produtos de algodão para a Grã-Bretanha. No entanto, esse
comércio era marginal em comparação com o que os comerciantes do Oriente Médio
e da Índia negociavam. Esses últimos detinham, durante séculos, o comércio
internacional nas mãos, ou seja, ‘vestiam a humanidade’. Mas, a partir do
momento em que os ingleses começaram a ‘dominar as águas’ (‘rule the waves’),
ou seja, possuíam as frotas marítimas mais poderosas do mundo, as coisas
mudaram. A tese do livro acima citado
consiste em mostrar que, concomitantemente com a presença sempre mais forte do
Império Britânico em todo o planeta, se deu o primeiro processamento de algodão
na Inglaterra, exatamente em 1784.
Em 1784, a cidade inglesa de
Liverpool se tornou um rico porto de tráfico de escravos e é com base nessa
riqueza negreira que a emergente indústria de algodão pôde florescer. Um membro
de alguma família negreira bem situada, Samuel Greg, reuniu em 1784, numa
pequena fábrica às margens do Rio Bollin, algumas máquinas de fiação
ultramodernas (conhecidas como water frame), movidas a água (ainda não a
vapor). Um grupo de órfãos e trabalhadores domésticos de aldeias da região
começou a trabalhar com um estoque de algodão proveniente do Caribe. Toda
novidade de Greg consistia no fato que ele não utilizava mais a força do
músculo humano, mas a queda d’água. Embora modesta, sua fábrica era algo novo,
que ia mudar os destinos do mundo. Pela primeira vez na história humana, a
produção de fios era feita por máquinas não impulsionadas por mãos humanas.
A fábrica de Greg provocou
mudanças que ele mesmo nunca imaginou. A matéria-prima que ele precisava para
as suas máquinas era fornecida por comerciantes de Liverpool, os quais a haviam
comprado de navios provenientes da Jamaica e do Brasil. Greg passou a expulsar
fiadores e tecelões indianos que até então dominavam a produção, tanto no
mercado doméstico quanto no internacional. Além disso, ele lutou para que
grande parte de sua produção deixasse o Reino Unido e sustentasse o comércio de
escravos na Costa Oeste da África, além de vestir seus próprios escravos em
Santo Domingos, no Caribe.
Mais, ele começou a atender
usuários na Europa Continental, fora da Inglaterra. Assim se formou uma vasta
rede internacional. Partindo de Liverpool, os comerciantes britânicos dominavam
os mares e formavam as redes comerciais. Desse modo se formou um triângulo de
consequências positivas para uns, nefastas para outros. Eis os pontos do
triângulo:
a. a Inglaterra (Liverpool) que, naquela época, controlava
os mares com sua frota comercial e militar;
b. a África Ocidental, onde os ingleses trocavam seus
tecidos por escravos;
c. a América, que comprava escravos em troca de fardos de
algodão cru cultivados por escravos da África.
Era a repetição do triângulo
feito em torno da produção de açúcar no Brasil, no Caribe e na América do
Norte, mas desta vez com repercussões mundiais. Os fardos de algodão eram
usados como carga de retorno a Liverpool ou Manchester, onde os tecidos eram
fabricados. Desse modo, a carga dos navios estava sempre assegurada. As
máquinas maravilhosas de Greg, impulsionadas pela força da água (e, mais tarde,
por vapor), impulsionavam outra inovação de grande importância: passaram a ser
operadas por assalariados e se tornaram fonte de riqueza por causa da grande
acumulação de capital. Isso criou um novo tipo de Estado, impulsionador do
‘progresso’, ou seja, criado como principal pilar do novo império do algodão. A
partir desse embrião local nas redondezas de Liverpool, a Inglaterra acabaria
por dominar uma economia global amplamente ramificada e por se apropriar de uma
das principais indústrias da humanidade.
A Inglaterra passou a ‘vestir a humanidade’ e estendeu suas asas por
todo o globo. Eis como nasceu o mundo como a conhecemos hoje.
Sob pressão do império do algodão
inglês, os agricultores na Ásia e na África foram forçados a entrar na
monocultura do algodão, o que resultou, às vezes, em grande escassez de
alimentos. Morreram milhões de pessoas em 1877 e, novamente, na década de 1890,
tanto na Índia como no Nordeste do Brasil. A especialização em algodão – com
seus preços voláteis – dominava o universo do dinheiro. Estamos diante de uma
evolução violenta, que causa a morte de milhões de pessoas, enquanto beneficia
a poucos ricos.
Outro mundo é possível? Outro
modelo de tecnologia que não seja violenta e não cause morte e pobreza para
muitos, enquanto produz riqueza para poucos? Existe tecnologia não violenta?
Gandhi tentou, outros ainda tentam, até hoje. Num próximo texto, prossigo
contando essa história de imbricação entre tecnologia e violência.
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