Parte 3:
O amor e as pontes
Num dia como hoje, um sábado, Jesus fez duas coisas que,
segundo nos diz o Evangelho, precipitaram a conspiração para matá-lo. Ele
passava com seus discípulos por um campo. Os discípulos tinham fome e comeram
as espigas. Nada se diz sobre o “dono” daquele campo… subjazia o destino
universal dos bens. A verdade é que, diante da fome, Jesus priorizou a
dignidade dos filhos de Deus sobre uma interpretação formalista, acomodatícia e
interessada da norma. Quando os doutores da lei se queixaram com indignação
hipócrita, Jesus lhes recordou que Deus quer amor e não sacrifícios, e explicou
que o sábado está feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado
(Marcos 2, 27). Ele enfrentou o pensamento hipócrita com a inteligência humilde
do coração, que prioriza sempre o ser humano e rejeita determinadas lógicas que
obstruem sua liberdade de viver, amar e servir ao próximo.
Depois, nesse mesmo dia, Jesus fez algo “pior”, algo que
irritou ainda mais os hipócritas e soberbos que o estavam vigilando, que
buscavam alguma desculpa para capturá-lo. Ele curou a mão atrofiada de um
homem. A mão, esse signo tão forte do trabalho. Jesus devolveu a esse homem a
capacidade de trabalhar, e com isso lhe devolveu a dignidade. Quantas mãos atrofiadas,
quantas pessoas privadas da dignidade do trabalho. Porque os hipócritas, para
defender sistemas injustos, se opõem a que elas sejam curadas. Às vezes penso
que quando vocês, os pobres organizados, inventam seus próprios trabalhos,
criando uma cooperativa, recuperando uma fábrica em bancarrota, reciclando os
dejetos da sociedade de consumo, enfrentando as inclemências do tempo para
vender numa praça, pedindo uma parcela de terra para cultivar e alimentar os
famintos, estão imitando Jesus, porque buscam curar, mesmo que seja um
pouquinho, mesmo que precariamente, essa atrofia do sistema socioeconômico
imperante que é o desemprego. Não me estranha que às vezes vocês também sejam
vigiados e perseguidos. Tampouco me estranha que os soberbos não liguem para o
que vocês dizem.
Jesus, naquele sábado, arriscou sua a vida ao sanar essa
mão, já que os fariseus e os herodianos, dois grupos em conflito, temiam o povo
e também o Império Romano, fizeram seus cálculos e se confabularam para
matá-lo. Sei que muitos de vocês arriscam suas vidas. Sei que alguns não estão
hoje aqui porque arriscaram suas vidas… mas não há maior amor do que dar a vida
em nome do que acredita. Isso foi o que Jesus nos ensinou.
As “três Ts” (terra, teto e trabalho), esse grito de vocês
que eu faço meu, tem algo dessa inteligência humilde, que é, ao mesmo tempo,
forte e sanadora. Um projeto-ponte dos povos contra o projeto-muro do dinheiro.
Um projeto que visa o desenvolvimento humano integral. Alguns sabem que nosso
amigo, o cardeal (Peter) Turkson preside agora o Dicastério que leva esse nome:
Desenvolvimento Humano Integral. O contrário do desenvolvimento seria atrofia,
a paralisia. Temos que colaborar para que o mundo seja curado de sua atrofia
moral. Este sistema atrofiado pode oferecer certos implantes cosméticos que não
contribuem para o verdadeiro desenvolvimento: crescimento econômico, avanços
técnicos, maior “eficiência” para produzir coisas que se compram, se usam e se
jogam fora, empurrando todos a uma vertiginosa dinâmica do descarte… mas ele
não permite o desenvolvimento do ser humano em sua integralidade, o
desenvolvimento que não se reduz ao consumo, que não se reduz ao bem-estar de
poucos, que inclui a todos os povos e pessoas na plenitude de sua dignidade,
desfrutando fraternalmente da maravilha da criação. Esse é o desenvolvimento
que necessitamos: humano, integral e respeitoso da criação.
Bancarrota e resgate
Queridos irmãos, quero compartilhar com vocês algumas
reflexões sobre outros dois temas que, junto com as “três Ts” e a ecologia
integral, foram elementos primordiais nos debates sobre os últimos dias e são
também importantes neste tempo histórico.
Sei que dedicaram uma jornada ao drama dos imigrantes,
refugiados e desterrados. O que fazer diante desta tragédia? No Dicastério do
cardeal Turkson há um departamento para a atenção destas situações. Decidi que,
ao menos por um tempo, esse departamento vai depender diretamente do Pontífice,
porque aqui há uma situação infamante, que só posso descrever com uma palavra,
que me surgiu espontaneamente em Lampedusa: vergonha.
Ali, como também em Lesbos, pude sentir de perto o
sofrimento de tantas famílias que foram expulsas de suas terras por razões
econômicas ou por violências de todo tipo, multidões desterradas como
consequência de um sistema socioeconômico injusto, e de conflitos bélicos que
não buscaram, que não foram criados por aqueles que hoje padecem o doloroso
desarraigamento de seu solo pátrio, mas sim por muitos daqueles que agora se
negam a recebê-los.
Faço minha as palavras de meu irmão, o arcebispo Jerônimo II
de Atenas: “quem vê os olhos das crianças que encontramos nos campos de
refugiados é capaz de reconhecer de imediato, em sua totalidade, a `bancarrota´
da humanidade” – discurso no campo de refugiados de Moria, em Lesbos, no dia 16
de abril de 2016. O que acontece no mundo de hoje? Por que, quando se produz a
bancarrota de um banco, aparecem imediatamente montantes escandalosos de
recursos para resgatá-los, mas quando se produz esta bancarrota da humanidade
quase não vemos a ajuda para salvar a esses irmãos que sofrem tanto? E assim o
Mediterrâneo se transforma num cemitério, e não só o Mediterrâneo… tantos
cemitérios ao lado dos muros, muros manchados de sangue inocente.
O medo endurece o coração e se transforma em crueldade cega,
que se nega a ver o sangue, a dor, o rosto do outro. Como disse o meu irmão, o
patriarca Bartolomeu I de Constantinopla: “quem tem medo de vocês não os olhos
nos olhos. Quem tem medo de vocês não viu os seus rostos. Quem tem medo não vê
os vossos filhos, esquece que a dignidade e a liberdade transcendem o medo e a
divisão. Esquecem que a migração não é um problema do Oriente Médio e do norte
da África, da Europa e da Grécia. É um problema do mundo” discurso no campo de
refugiados de Moria, em Lesbos, no dia 16 de abril de 2016.
É, de verdade, um problema do mundo. Ninguém deveria se
verse obrigado a fugir de sua pátria. Mas o mal é duplo quando, além dessas
circunstâncias terríveis, o imigrante se vê lançado às garras dos traficantes
de pessoas para cruzar as fronteiras, e é triplo se, ao chegar na terra onde
acreditou que encontraria um futuro melhor, precisa enfrentar o desprezo e a
exploração, ou até mesmo a escravidão. Isso se pode ver em muitos lugares, em
centenas de cidades.
Peço a vocês que façam tudo o que possam e nunca se esqueçam
que Jesus, Maria e José experimentaram também a condição dramática dos
refugiados. Peço a vocês que exercitem essa solidariedade tão especial que
existe entre os que já sofreram. Vocês sabem recuperar fábricas da bancarrota,
reciclar o que outros jogam fora, criar postos de trabalho, lavrar a terra,
construir moradias, integrar bairros segregados e reclamar sem descanso como
essa viúva do Evangelho que pede justiça insistentemente (Lucas 18, 1-8).
Talvez, com o seu exemplo e sua insistência, alguns Estados e organismos
internacionais abram os olhos e adotem as medidas adequadas para acolher e
integrar plenamente a todos os que, por uma ou outra circunstância, buscam
refúgio longe do seu lar. E também para enfrentar as causas profundas pelas
quais milhares de homens, mulheres e crianças são expulsas a cada dia de sua
terra natal.
Dar o exemplo e reclamar justiça são formas de fazer
política, e isso me leva ao segundo eixo que debateram durante o Encontro: a
relação entre o povo e a democracia. Uma relação que deveria ser natural e
fluída, mas que corre o risco de se desfazer, e de se tornar irreconhecível. A
brecha entre os povos e nossas formas atuais de democracia aumenta cada vez
mais de tamanho, como consequência do enorme poder dos grupos econômicos e
midiáticos que parecem dominá-las. Eu sei que os movimentos populares não são
partidos políticos, e deixe-me dizer que, em grande medida, nisso radica a sua
riqueza, porque expressam uma forma distinta, dinâmica e vital de participação
social na vida pública. Porém, não tenham medo de participar das grandes
discussões, da Política com maiúscula, e cito novamente o Papa Paulo VI: “a
política oferece um caminho sério e difícil – embora não o único – para cumprir
o importante dever dos cristãos e das cristãs: o de servir aos demais” (carta
apostólica Octogesima Adveniens, de 14 de maio de 1971).
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