Interpretar a condição humana no quadro da vida planetária
Na história das civilizações, a religião registra as primeiras leituras interpretativas da condição humana em seu meio. As hierofanias sempre revelam um forte nexo entre divindade, humanidade e natureza. As narrativas de origem do cosmo e do ser humano — com sua linguagem metafórica, figuras emblemáticas e rememorações rituais — compuseram visões de mundo e ajudaram o próprio ser humano a situar-se, em relação com os astros, com seu meio vital, com os semelhantes e consigo mesmo.
Assim emergiram variadas noções de tempo, espaço e transcendência, conjugando o particular e o universal. De tal sorte que, ainda hoje — após séculos de evolução tecnológica e científica — o acervo das religiões surpreende pela sua complexidade e promessas. Nem mesmo o fundamentalismo e a violência presentes na história das religiões, dolorosamente dramáticos, desqualificam por si só a contribuição religiosa à humanidade.
Neste sentido a atual construção do saber, dinamizada por diferentes paradigmas — e particularmente o conhecimento em humanidades e em ciência ecológica— volta-se ao patrimônio antropológico, ético e pedagógico das religiões, como fonte de sabedoria e compêndio de um primeiro conhecimento ecológico, cujas premissas ainda perduram em muitas culturas. A importância vital das águas e florestas, a observação dos astros e o fenômeno das estações fazem parte do conceito religioso de sagrado, influenciando as culturas, dos ritos à linguagem, das artes à culinária.
Esse tipo de saber e valoração da natureza se inclui na busca de saberes essenciais da humanidade neste terceiro milênio. Especialmente para que o ser humano se situe adequadamente no mundo, inserindo-se, dialogando e construindo — em vez de distanciar-se, isolar-se e destruir-se, destruindo também o meio ambiente.
Alguns autores reclamam um saber humano que inclua a noção de mistério no tratar do cosmo, da vida e da natureza humana. Este saber (mais holístico) situa o mundo físico, biológico e vivo no horizonte de um “além de plenitude” que seja inspirador e educador para a humanidade. Outros cumprem a mesma tarefa desde dentro das tradições religiosas que professam. A identidade confessional é colocada a serviço do bem humano em geral e do bem ecológico em particular. Releem suas fontes mitológicas, litúrgicas e escriturísticas, encontrando na sua religião uma inscrição do próprio cosmo. Emergem, então, vários elementos que podem beneficiar a vida humana e de todo o planeta.
Essa releitura ecológica das fontes atinge também o acervo das tradições orais que perduram na comunidade religiosa que narra, festeja, semeia, colhe, come, bebe e dança ritualisticamente, revivendo no corpo a sabedoria ancestral (Reginaldo Prandi). É um uso respeitoso do patrimônio das religiões, além de necessário e vital para nosso quadro de crise ecológica. Desse modo, as religiões interpretam a condição terrena e cósmica da humanidade e nos levam a perceber que somos membros de uma comunidade planetária.
Marcial Maçaneiro
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