Considerar o humano como “filho da
terra” e sua expressão auto-consciente impacta diretamente na teologia da
criação, na antropologia teológica e na escatologia. Propicia novas leituras a
respeito dos relatos da criação, superando uma visão antropocêntrica egóica e
dominadora. Traz para a reflexão teológica o tema da origem do nosso planeta,
em diálogo com as geociências. Recoloca questões vitais, como: qual a
participação e o lugar das outras criaturas no projeto salvífico de Deus? Em
que consiste a esperança bíblica de “novo céu e a nova terra”? Como reformular
a relação entre matéria e espírito, corpo e alma? Além disso, se somos
responsáveis pelo futuro da Terra habitável, isso exige desenvolver uma ética
cristã planetária, que vá além das subjetividades, integre as causas sociais
com as ambientais e inclua a questão da paz e do diálogo inter-religiosa num
mundo plural.
Da ecologia à ecoteologia
O termo “ecologia” é muito amplo e
abarca ao menos três âmbitos: ciência
da interdependência de todos os seres, ética
do cuidado com o planeta e paradigma
pós-antropocêntrico. A ecologia apresenta várias vertentes: ambiental, mental,
social e integral. Ela visa compreender como os seres se relacionam na
bioesfera. Ora, a ecologia, na sua multiplicidade de sentidos (enquanto
ciência, ética e paradigma), toca a totalidade do sujeito. A cristã/o se vê então
desafiado a ampliar sua autocompreensão (quem sou eu, quem é o ser humano neste
mundo) e a repensar suas relações com os outros seres abióticos (solo, água,
ar, energia do sol) e bióticos (microorganismos, plantas, animais e humanos) na
grande, bela e complexa teia da vida no nosso planeta.
A originalidade da ecoteologia
radica tanto no método e na linguagem, quanto no conteúdo. Seguindo tendência
semelhante de outras ciências, ela anseia romper com a separação rígida entre
sujeito e objeto, no ato de conhecer. Assim, “abandona o pensamento analítico,
com suas distinções de sujeito e objeto, em favor de uma forma de pensar nova,
comunicativa e integradora. Resgata o antigo conceito da razão como órgão
perceptor e participativo” (Moltmann, Deus na Criação). Mudam os interesses que
guiam o conhecimento. Já não se conhece para dominar, mas “para participar,
para integrar-se nas relações recíprocas do vivo”.
O método da ecoteologia combina vários acessos
à comunhão da criação: tradição, experiência, ciência, sabedoria, dedução,
intuição. Expressa-se por símbolos e não somente conceitos, que configuram o
inconsciente e regulam a consciência. Por fim, incorpora a imaginação criativa
e prenhe de esperanças no futuro. “Em teologia, a fantasia é inseparável de
Deus e de seu Reino. Se expulsamos da teologia as imagens da fantasia, a
mataremos” (Moltmann, Deus na Criação).
A ecoteologia dialoga constantemente
com as ciências ambientais. Elas são
fundamentais para formatar uma moral ecológica cristã bem fundamentada e
significativa. Mas não somente isso. Em sintonia com outras correntes de
pensamento atual, como a teoria da complexidade, o “pensar ecológico” abre portas inusitadas para vários saberes.
A ecoteologia se insere no movimento
de continuidade, novas sínteses, articulação e avanço, que caracteriza a
teologia contemporânea. Não alimenta a ilusão de ser a grande chave de
interpretação para reconfigurar toda a teologia. Nem tampouco é um pequeno
setor, que se ocupa somente de questões ambientais ou da teologia da criação.
Consiste em uma perspectiva, um enfoque, que permite reorganizar dados da fé,
inferir, dialogar e aprofundar. Ela influencia a produção da teologia ao
colocar perguntas decisivas no momento de realizar o “intellectus fidei”, a
mediação hermenêutica propriamente teológica, que utiliza a Bíblia e a Tradição
eclesial, sensível aos “Sinais dos Tempos”.
Originalidade da ecoteologia
A ecoteologia exerce papel de saber
crítico-construtivo, justificador e sapiencial.
- Enquanto saber crítico, denuncia a
privatização da fé cristã, que a reduz a um lenitivo para resolver questões
pessoais e promover uma paz reduzida ao âmbito da subjetividade. Evidencia como
o antropocentrismo unilateral contagiou os cristãos. Mostra a inviabilidade do
consumismo, para o futuro da humanidade e do planeta. Resgata elementos
fundamentais da doutrina e da espiritualidade cristãs, com o novo olhar do
pensar ecológico.
- Como saber justificador, a ecoteologia
rebate as críticas do que o cristianismo, desde as origens, foi o grande
responsável pela atitude de dominação sobre o planeta. Evidencia que a visão
bíblica não é antropocêntrica, mas sim teocêntrica relacional. O ser humano,
constituído do “barro da Terra” e do sopro criador de Deus, é chamado a cuidar
do jardim da criação (Gn 2) e a administrar os bens da Terra (Gn 1). O
cristianismo não funda a ilusão do progresso ilimitado, porque não tem visão
linear da história, e sim kairológica e messiânica.
- Por fim, a ecoteologia é
sapiencial pois não visa somente o conhecimento, mas também o bem viver e a
realização do projeto divino de co-existência do ser humano com Deus, seus
semelhantes e a comunidade de Vida do planeta. Peregrinar neste mundo com equilíbrio,
bom senso e cultivo das virtudes. Fazer um caminho de santidade.
A ecoteologia explicita no pensar
teológico o princípio holístico e holográfico. Ou seja, o todo é maior do que a
soma das partes, e em cada parte se condensa algo do todo. Isso é fundamental
para recuperar a unidade de teologia, que se fragmentou em uma série de áreas e
disciplinas, por vezes desconectadas entre si. Poucas vezes o estudante de
teologia é estimulado a estabelecer relações entre aquilo que aprende
especificamente na área da bíblia, da história, da dogmática, da moral e da
liturgia. O mesmo se diz entre teologia, espiritualidade e pastoral, que
parecem casas diferentes, de vizinhos que não se comunicam.
Ora, o pensar ecológico é aquele das
relações e da interdependência. E neste sentido, toda e qualquer teologia
necessita fazer um processo de conversão para ser mais “eco-lógica”. Ou seja, em vez de levantar paredes e construir
cômodos independentes, empenhar-se para edificar a “casa comum”, na qual
circulam, de forma interdependente, a espiritualidade, a prática transformadora
(práxis) e o conhecimento teológico.
Afinal, o que é ecoteologia?
Em síntese, a ecoteologia é uma
corrente teológica, em estreita relação com outras correntes teológicas, que:
(1) incorpora a contribuição das
ciências ambientais, das práticas socioambientais e do paradigma ecológico para
reler e reelaborar a auto-compreensão da fé e do discurso teológico,
(2) reflete sobre a contribuição da
fé cristã para o cuidado com o planeta, a sustentabilidade e o bem viver,
(3) desenvolve uma espiritualidade conectada
com o mundo, unificadora, celebrativa, alegre, esperançada e lúcida,
(4) articula a dimensão social da fé
cristã com a emergente consciência planetária, ampliando o horizonte da
Teologia da Libertação Latino-americana e incorporando elementos
crítico-construtivos de outras teologias contextuais (com a de gênero, étnicas,
culturais, inter-religiosas).
(5) convoca os cristãos e outros
interlocutores para desenvolverem atitudes pessoais, ações coletivas e
processos institucionais para manter a terra habitável e promover a inclusão
social dos pobres (teologia prática ou da práxis). Tal postura é compreendida
com diversos termos, como: cuidado, salvaguarda, integridade da criação.
A ecoteologia latino-americana necessita
de pesquisadores, professores, alunos de graduação e pós-graduação, sem
prescindir dos agentes de pastoral. Por isso, reconhecemos a importância de
agregar pessoas e grupos nesta causa, fundamental para a humanidade neste
momento histórico.
Fonte: Afonso Murad. Ecoteologia: Um
mosaico, cap.6. São Paulo: Paulus, 2016.
AMEI O ARTIGO , MUITO INFORMATIVO, INTERESSANTE, COERENTE, ATUAL E ESCLARECEDOR .
ResponderExcluirObrigada pelo artigo! Você tem referências bibliográficas para indicar sobre o tema?
ResponderExcluirMuito esclarecedor, agradeço!
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