quarta-feira, 20 de maio de 2015

Ciência e Sabedoria

           No capítulo X de seu livro Ciência e sabedoria, Moltmann faz um percurso pelos modos de conhecer do ser humano, ou pelo espanto ou pelo temor de Deus, para depois refletir sobre a responsabilidade ética dos cientistas e o alcance de suas pesquisas.
Segundo as tradições bíblicas, o temor do Senhor é o início da sabedoria. Segundo os filósofos gregos antigos a raiz do conhecimento é o espanto, (*a admiração, a surpresa). Há duas janelas diferentes para a realidade? As ciências naturais e as ciências humanas se tornaram culturas muitos diferentes? Ou o espanto com a natureza pode nos levar ao temor de Deus e o temor de Deus ao espanto com a natureza?
Numa epistemologia geral pode-se ver como o conhecimento do igual e do análogo conduz ao reconhecimento do já conhecido e à confirmação. Mas como conhecemos algo novo? A raiz do conhecimento está no espanto quando nos deparamos com algo imprevisto e inesperado e nossos sentidos se abrem à recepção direta das impressões. Se nos abrimos à impressão do novo, surgem novas formas do apreender, de modo que podemos conservar e recordar a impressão do novo e trabalhar sobre nossas novas impressões que correspondem a ele em nós. No espanto, percebemos as coisas pela primeira vez e somente na segunda vez se formam lembranças por meio das quais as impressões podem ser compreendidas. O espanto da primeira vez perde-se no acostumado.
Cada nova “descoberta” das ciências naturais desperta o espanto da primeira vez. Depois, tais experimentos são repetidos experimentalmente e assimilados como ampliação do conhecimento. Mas desde o início da era moderna essas descobertas são feitas ativamente e a pesquisa científica pergunta mais “como funciona isso e o que se pode fazer com isso?” do que pela essência das coisas e da sabedoria de suas formas e conexões.  No entanto, toda descoberta real está também fundamentada no lado objetivo dos fenômenos. Eles, esperados, mas não forçados, nos surpreendem. Se olhamos para o lado passivo e ativo do conhecimento, também encontramos a harmonia entre aquilo que se mostrou e o que foi descoberto. Assim, descoberta e revelação são dois lados do mesmo evento.

A razão moderna das ciências naturais compreende “apenas o que ela mesma produz segundo seu projeto” (Kant), mas com isso, a natureza só é cognoscível em sua reação às ações humanas, não em sua singularidade. Então, que natureza é objeto das ciências naturais? A razão ativa, apreendedora, pergunta como os sistemas naturais funcionam e o que o homem pode fazer com eles tecnicamente, para seu próprio proveito. O objetivo parece ser a construção segundo um modelo, ou a reconstrução dos sistemas naturais. Nesse sentido, é uma imagem humana que impomos à natureza e não a imagem que a natureza mostra de si para nós.
Hoje as ciências naturais e as ciências biológicas são apresentadas como neutras do ponto de vista dos valores, de modo que estes só devem ser acrescentados posteriormente. Isso não está correto, pois orientações claras antecedem as ciências naturais: a vontade de potência sobre a natureza e de domínio sobre a vida e o objetivo de ampliar essa potência sem fronteiras. Por isso se trata, nas discussões modernas sobre a pesquisa atômica e as ciências biológicas, de duas orientações diferentes e muitas vezes contraditórias: de um lado, o progresso no ganho do poder, de outro o éthos da dignidade humana.
Se a pesquisa da natureza é a investigação das memórias naturais nos sistemas da matéria e do vivo, então investigamos a sabedoria contida em sistemas naturais, e o fazemos para nos tornar, nós próprios, sábios. Como nos tornamos sábios? A sabedoria deriva da relação com as experiências que temos. O que torna sábio é o conhecimento do conhecimento. A sabedoria é uma ética do saber. Quem faz daquilo que sabe uma consciência deve se perguntar: para que servem seus conhecimentos? O que as experiências fizeram de sua vida? O que permanecerá quando você morrer? Perguntamos por sabedoria no trato com o divino, o cósmico e o humano. Mas antes devemos nos perguntar se são sabedorias diferentes ou se é uma sabedoria que abrange e une as três dimensões.

Na teologia da revelação, tudo se passa como se Deus se revelasse em eventos e pessoas da história humana e então fosse reconhecido na natureza. Na teologia da sabedoria, Deus é conhecido a partir da vida e das ordens da natureza e então reconhecido na sabedoria de vida humana. Em vez de Deus-homem-natureza, a ordem é Deus-natureza-homem.
           Segundo o Antigo Testamento, o homem ganha a sabedoria divina no “temor do Senhor”. Isso se refere à sublimidade de Deus, que desperta reverência e humildade quando é percebida pelo ser humano. Temor e amor descrevem os dois lados da presença de Deus: distância e proximidade, sublimidade e intimidade, transcendência e imanência. Que conhecimento nasce do temor e do amor a Deus? Primeiro, uma reflexão sobre o próprio homem. Ante a sublimidade de Deus, o ser humano se conscientiza de sua nulidade e desaparece toda autodivinização. Mas no amor de Deus, toma consciência de seu significado para Deus e desaparece assim todo autodesprezo.
Em Provérbios 8 se afirma a preexistência da sabedoria divina. O livro da Sabedoria diz que as atividades da sabedoria são vistas no formar, moldar e ordenar a obra da criação. Deus não somente chama o mundo à existência, mas configura todas as coisas de tal forma que elas se tornam reflexo de sua glória. Ele é o mistério divino da criação, que se exprime em todas as criaturas e em suas inter-relações, mas também as supera.

A sabedoria cósmica fala aos homens. Isso pressupõe a crença de que a criação é, por princípio, cognoscível para as criaturas humanas. Pode-se imaginar isso como uma imanência gradual do criador do mundo: (1) Em suas obras de criação por sua sabedoria, (2) Em suas obras de santificação por seu Espírito, (3) Na redenção, por sua glória. A dimensão divina da sabedoria imanente no cosmos mantém essa sabedoria longe do conhecimento humano, por mais que seja conhecida. Essa é a dimensão transcendental da sabedoria imanente. Isso nos torna humildes em nosso conhecimento do mundo. Se o conhecimento científico leva em conta essa dimensão transcendental, o interesse que o guia não estará apenas no domínio e na apropriação da natureza conhecida, mas também na atenção a ela.
Na sabedoria humana, trata-se da diferenciação de bom e mau, conservação e aniquilação, vida e morte. Acrescenta-se ao éthos científico o éthos no trato com os conhecimentos científicos. Na responsabilidade do cientista, entra sua responsabilidade como cidadão na sociedade e como portador de sua cultura. Sábio é fazer dos conhecimentos científicos apenas o que serve à vida, e resistir e renunciar ao que espalha aniquilação e morte.
Até onde vai a responsabilidade dos cientistas pelas pesquisas ou também por aquilo que eles mesmos ou outros fazem com seus resultados? Essa foi, no último século, a pergunta pela guerra e pela paz. Em circunstâncias normais, a responsabilidade científica estende-se até aos métodos de pesquisa. Mas a responsabilidade pela direção da pesquisa ultrapassa o indivíduo. Contudo, na transição para a economia bélica, os cientistas individuais também se põem diante da pergunta ética: devem colaborar com os meios de destruição em massa ou se recusar a isso? O cientista é também cidadão e partícipe da responsabilidade política.

A “utilização pacífica” e simultânea da energia nuclear começou com a promessa de uma “fonte de energia inesgotável”. Infelizmente, os envolvidos caíram na armadilha do “aprendiz de feiticeiro”: as pessoas conheciam as fórmulas para o emprego industrial da energia atômica, mas não as fórmulas para a eliminação do lixo atômico radiativo. Esse conhecimento deveria tornar os cientistas, os políticos e o público cautelosos quando os biotécnicos pedirem dinheiro de pesquisa com promessas salvíficas semelhantes. Erros na tecnologia genética como na energia atômica têm consequências para várias gerações no futuro.
A “primeira fórmula do poder” está hoje nas mãos dos cientistas; a “segunda fórmula do poder” seria a fórmula da liberdade ética sobre o poder físico e está nas mãos da sabedoria. Não é preciso fazer tudo que se pode fazer. Essa é a hora da sabedoria e da superação da crença no progresso. Precisamos de outra época para a integração da civilização humana ao sistema de vida desta terra, porque também somos uma parte da natureza e não seus senhores, semelhantes a deuses.
O temor de Deus gera a sabedoria ética com que o homem conhece e reconhece seus limites e, com isso, adquire poder sobre seu poder científico e técnico. Depois de um aumento tão extraordinário de saber precisamos no futuro próximo de um aumento ainda maior de sabedoria e de relação sábia com esse saber.

Resumo de: MOLTMANN, Jürgen. Ciência e Sabedoria. In: ______. Ciência e sabedoria. São Paulo: Loyola, 2007. cap. 10, p. 187-206, como atividade de Iniciação Científica, bolsa da FAPEMIG, realizado por Gonzalo Benavides Mesones, estudante de Teologia da FAJE, Faculdade Jesuíta, sob orientação do prof. Afonso Murad.

 

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