terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Perspectivas escatológicas para o futuro do universo

No capítulo 5 de seu livro “Ciência e Sabedoria” (Ed. Loyola), Jürgen Moltmann aborda o tema das perspectivas escatológicas da teologia cristã para o futuro do universo. Ele pergunta: as escatologias humana e cósmica podem ainda hoje ser pensadas juntas e harmonizadas? Para dar uma resposta, o autor coloca a escatologia cristã, de forma crítica e autocrítica, no contexto da astrofísica moderna. Como nos capítulos anteriores, Moltmann segue a proposta da “teologia natural”, segundo a qual os conhecimentos natural-científicos nos dizem algo sobre Deus, e as visões teológicas algo sobre a natureza.
A teologia adquire horizonte escatológico a partir da experiência especial de Deus (root-experience), isto é, dos acontecimentos em que Deus se “revela” e que conferem às comunidades humanas sua identidade religiosa. Essas “experiências de raiz” contêm, desde o início, horizontes experienciais gerais e expectativas futuras universais, pois são experiências temporais do Deus eterno.
Para o judaísmo, a experiência raiz é o Êxodo, em cujo horizonte o Deus que liberta Israel é percebido como o “criador” de todas as coisas em todas as coisas. Essa crença na criação dessacralizou e desencantou o mundo, e também o abriu para a intervenção científica e técnica do ser humano. Já no cristianismo, a experiência raiz é Cristo, sua morte e ressurreição. Nesse horizonte, o Deus que tirou Cristo da morte é percebido não apenas como criador, mas como consumador de todas as coisas. Na compreensão do evento singular da ressurreição de Cristo já estava presente o horizonte escatológico universal. A nova criação já começa no meio da velha. O desenvolvimento da escatologia cristã representa as dimensões cósmicas do acontecimento Cristo.
As tradições bíblicas estão baseadas num princípio antrópico, quer dizer, na concepção do ser humano como centro da criação e na coincidência do fim deste mundo com o fim da humanidade. Mas, hoje sabemos que a humanidade como um todo é mortal e que o universo num futuro longínquo pode ser um universo sem pessoas. Essa constatação questiona o sentido da escatologia humana.
Se se introduz o princípio cósmico nessa antropologia, surge outra imagem. Vemos não apenas o universo no ser humano e o ser humano como o sistema supremo, complexo e autoconsciente que conhecemos, mas também o ser humano no universo e o universo como o mais amplo contexto para o desenvolvimento das possibilidades humanas. Nessa perspectiva, o futuro do universo não estaria atrelado ao futuro do ser humano, mas o futuro do ser humano é que seria integrado ao futuro do universo.
Atualmente, conscientemente ou não, o ser humano procura vencer a morte e viver o máximo possível, mas, um futuro infinito da vida e do universo como hoje os conhecemos, é realmente desejável? Se a morte e o tempo fossem superados, não haveria mais nada de novo, então, um mundo sem fim seria o fim do mundo.
As concepções de um “fim do mundo” pressupõem que este mundo é temporal e tem um começo e um fim com o tempo, que o universo está num movimento singular chamado “história”. Teologicamente, as concepções “milenaristas” do fim do mundo falam de uma meta (telos) do desenvolvimento do cosmos. Por outro lado, as concepções “apocalípticas” falam de um fim (finis) da história cósmica. Na escatologia cristã sempre está presente uma combinação de ambas as ideias, fim e começo, pois a escatologia só pode ser considerada cristã se se orienta pelo evento do Êxodo de Israel e pelo acontecimento de Cristo. O cativeiro de Israel e a morte de Cristo são protótipos da catástrofe. A saída para a liberdade da Terra Prometida e a ressurreição para a vida eterna do mundo vindouro são protótipos do novo começo.
A destruição do mundo (annihilatio mundi), pregada pelos luteranos no séc. XVII e pelos “aniquilacionistas” evangélicos modernos, anuncia a destruição como destino final do universo. Sua pregação diz que anjos e crentes se entregarão totalmente à visão beatífica de Deus “face a face”, de modo que não mais precisem deste mundo criado (2Pe 3,10.12; Ap 2,11; Ap 21,1). Em outras palavras, o fim da criação é um movimento da existência para o não-ser.
Por outro lado, a transformação do mundo (transformatio mundi) representa a expectativa teológica geral que espera a mudança do universo do estado agora observável para um estado qualitativamente novo. Pregada pelos calvinistas e a teologia católica da Idade Média, vê na fidelidade de Deus o fundamento transcendente da criação e a garantia divina de duração para o universo. A forma do velho mundo são pecado, morte e transitoriedade; a forma do novo mundo são justiça, vida eterna e imperecibilidade.
A deificação do cosmos (deificatio mundi) pregada pela teologia ortodoxa considera que a pessoa humana e a natureza da Terra formam uma unidade, portanto, o que é prometido à pessoa humana vale também para o planeta e o cosmos. Se a escatologia humana e a cósmica constituem uma unidade, não há futuro humano sem o futuro do universo. O cosmos é salvo se a humanidade é salva, e vice-versa.
A concepção escatológica do futuro do universo diferencia sua história em duas fases: o “tempo deste mundo” (tempo do mundo transitório) e o “tempo do mundo futuro” (tempo de um mundo permanente e eterno). Ela também distingue a realidade em “Terra” (mundo visível, singular) e “Céus” (mundo invisível, plural). O tempo da “Terra” é o chronos com sua estrutura temporal irreversível do vir-a-ser e do perecer; o tempo dos “Céus” é o aion, aevum com estrutura temporal reversível do círculo do tempo.
O ser eterno de Deus se distingue da terra e dos céus e seu tempo é a eternidade. Isso não quer dizer tempo sem fim, nem atemporalidade, mas potência temporal. A eternidade do Criador em si deve ser vista na anterioridade, simultaneidade e posterioridade dele. Sua eternidade se determina com poder do futuro para o tempo irreversível: há, por conseguinte, futuro passado, futuro presente e futuro futuro.
As consequências desses pressupostos para a compreensão do universo cientificamente explorável são:
a) Consequências negativas: o universo visível não é divino, não mostra qualidades divinas nem é celeste. É passageiro, temporal e contingente.
b) Consequências positivas: o universo visível é temporal, contingente e finito, mas tem um futuro eterno, permanente e infinito no universo futuro, novo. O mundo futuro, novo, trará aquilo de que sentimos falta neste mundo finito: a presença eterna de Deus e a participação nas qualidades dessa presença divina, ou seja, aquilo que tem sentido em si mesmo.
 Então, a passagem “deste mundo” para o “mundo futuro” é uma transformação universal “deste mundo” (Ap 21,4: “Eis que faço novas todas as coisas”). Tudo o que é criado, que foi, é e será aqui deverá ser feito “novo”. O mundo futuro, novo, eterno deve ser a nova criação deste mundo que conhecemos. Não se pode dizer quando isso acontecerá, pois esse momento escatológico precisa ser também o fim do tempo irreversível, não podendo portanto cair neste tempo. Ante a eternidade de Deus que aparece no momento escatológico, todos os tempos ficam simultâneos. O momento escatológico põe fim ao tempo linear e assume um elemento do tempo cíclico. Não ocorre um eterno retorno do mesmo, mas um retorno único de todas as coisas.
Esse modelo escatológico para o “futuro do universo” é o único modelo que percebe um futuro para o passado, exprime esperança para os mortos e descobre futuro para os diferentes estágios do universo.


Resumo de: MOLTMANN, Jürgen. Perspectivas escatológicas para o futuro do universo. In: ______. Ciência e sabedoria. São Paulo: Loyola, 2007. cap. 5, p. 95-114, como atividade de PIBIC, bolsa da FAPEMIG, realizado por Gonzalo Benavides Mesones, estudante de Teologia da FAJE, Faculdade Jesuíta.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Direitos cósmicos e espiritualidade

Marcelo Barros

Comumente, a sociedade dominante apresenta os Direitos Humanos apenas como campo de inviolabilidade individual. Nele se destacam os direitos liberais de ir, vir, comprar e consumir. Nas últimas décadas, quem mais invoca a Declaração dos Direitos Humanos são os impérios ocidentais. Eles insistem nesses direitos individuais, mas para tê-los o passaporte necessário é o dinheiro. Nesse tipo de sociedade, a pessoa só é cidadã se puder ganhar e consumir (..) Mesmo nos países que eles não invadem, violam a justiça internacional e patrocinam golpes e financiam os piores partidos políticos, sempre à sombra dos direitos humanos e até do nome de civilização cristã.
As antigas civilizações da Ásia, Oceania e África, assim como as comunidades índias e afrodescendentes da América insistem que os direitos não são apenas individuais e sim comunitários e coletivos. Também não isolam direitos humanos do cuidado com a mãe-terra, dos animais e de todos os seres vivos que se tornam assim, de alguma forma, sujeitos de direitos. É uma outra concepção de direitos humanos.

É dever das pessoas de bem, das comunidades e organizações sociais incorporar em seu trabalho essas concepções contra hegemônicas e alternativas dos Direitos Humanos. O amor incondicional e solidário nos leva a assumir a responsabilidade ética pelos mais frágeis e marginalizados por essa sociedade cruel. No entanto, além de solidarizar-se à luta dos lavradores, índios, negros, mulheres oprimidas e todas as categorias de alguma forma vítimas da sociedade excludente, essa solidariedade nos leva a um novo modo de pensar e viver a relação com a Terra, a água, a natureza, os animais e todo ser vivo. Também, a Terra, as águas, os animais e as plantas precisam ser cuidados e defendidos. Não podemos tratá-los como se fossem meras mercadorias. Conosco eles formam uma grande teia de relação que é como uma comunidade: a comunhão da vida.

Esse modo de viver e compreender a vida e os direitos humanos faz parte de uma cultura amorosa que compreende e pratica a Espiritualidade como forma de viver plenamente humana e humanizadora. As tradições religiosas têm como missão ajudar as pessoas a aprofundar esse sentido mais profundo da vida. Infelizmente, ainda há muita gente que confunde Espiritualidade com Espiritualismo e trata a fé como se se tratasse de um assunto meramente íntimo da relação livre do fiel com uma divindade. A mística francesa Simone Weil afirmava: "Eu reconheço quem é de Deus não quando me fala de Deus, mas pelo seu modo de tratar as outras pessoas”.


Todas as religiões, de uma forma ou de outra, reconhecem: o divino só pode ser encontrado realmente no humano. A espiritualidade, religiosa ou não, faz da defesa dos direitos do ser humano e da natureza um método de intimidade com o Divino, presente no mundo. No século II, Irineu, pastor da Igreja de Lyon, ensinava: "Como você poderá divinizar-se se ainda nem se tornou humano? Antes de tudo, garanta a condição de ser humano e, assim, poderá participar da glória divina”.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O Espírito em uma criação esplêndida e ameaçada

Buscando visualizar numa terra esplêndida e ameaçada, a espiritualidade ecumênica da criação, Simone Morandini, doutor em teologia ecumênica, associa criação, espiritualidade e crise ecológica e faz um estudo da crise ambiental como tempo de especiais interrogações para fé e para vivencia de uma espiritualidade ecumênica da criação. O teólogo levanta as seguintes questões: A crise ambiental é espaço de conversão? A crise ecológica pode ser vivida como tempo de interrogações para fé e construção de uma sólida espiritualidade? É possível a ação do Espírito em uma criação esplêndida, mas ameaçada? Trata-se de reconhecer a palavra que chega do Senhor por meio da criação, que convoca a uma relação de contemplação da presença amorosa do Criador na criação, expressão do seu Espírito.

O desejo da espiritualidade nos conduz ao espírito, à realidade da sua ação na criação. O Espírito - na sua dinâmica de dar a vida e fazer viver, que cria e recria renovando a presença da força em nós - é visível na criação. É importante reencontrar o vínculo estreito que existe entre o espírito e a criação e colocá-lo em primeiro plano na espiritualidade ecumênica da criação. Viver essa espiritualidade significa apreender o movimento do Espírito criador, deixando-se envolver a ponto de sermos inseridos no processo próprio do espírito com a sua criação. Esse renova e cria vida em nós, dotando-nos de sensibilidade de visão da beleza do Criador por sua criatura e por sua criação que merece ser cuidada e respeitada.

Uma espiritualidade experimentada na perspectiva da relação com a criação direciona-nos a palavra da Escritura. A ação do Deus de Abrão já não interessa unicamente à interioridade humana, mas está sempre estreitamente entrelaçada com a referência à sua providencia que age no cosmo. A espiritualidade autenticamente cristã compreende e vive plenamente o mistério da páscoa de Jesus de Nazaré em relação com o grande mistério de um mundo criado bom pelo Pai e conduzido a seu cumprimento pelo Espírito. O espírito é presença do amor de Deus em nossa criação e ao mesmo tempo é força na construção de uma relação de cuidado, de respeito pela vida criada, que ensina a sentir a natureza também na sua fragilidade e o seu gemido.
A atração de uma espiritualidade da criação não deixa de apresentar os seus riscos. Há espiritualidades que se apresentam como alternativas de vida mais próxima da natureza, mas não convincentes em sua prática. Segue nesta direção a New Age, que separa as diversas esferas da vida e do nosso ser; como também a espiritualidade da creation espirituality que contrapõe a espiritualidade centrada na criação a uma espiritualidade tradicional, atenta ao pecado e à redenção. Devem apresentar características interessantes, mas nem sempre são suficientes para entender o que caracteriza a escritura cristã na sua complexidade de mostrar o sentido do negativo, da dor.  Cremos que o próprio esplendor da criação só pode ser vivido em plenitude desde que apreendido com o gemido que se eleva na crise ecológica.  

Criação e redenção não podem ser contrapostas. É preciso ver a realização de ambas no Verbo que se fez carne. Na encarnação do Filho é possível descobrir um Deus que se aproxima da criação, que se faz presença na dinâmica positiva dela, levando-a além dos seus gemidos. O espírito de Deus opera vida na dinâmica da criação, para conduzi-la à vida plena.
A perspectiva ecumênica acredita na força do diálogo interconfessional e inter-religioso para construir uma espiritualidade que salvaguarda a vida dada à criação pelo criador. Somente o diálogo e a escuta recíproca é capaz de dar valor àquela força espiritual que as varias confissões de fé doam para preservar o espaço comum, que é o planeta. Ecologia e ecumenismo compartilham da mesma casa. Espiritualidade ecumênica da criação não se resume em buscar algo em comum existente. Mais do que isso, indica gestos e palavras que ajudem concretamente a viver com mais força a própria fé e o cuidado com o planeta.
Antonio Luis Oliveira S. Filho, bolsista PIBIC em teologia na  FAJE

Fonte: MORANDINI, Simone. Terra esplêndida e ameaçada. Por uma espiritualidade ecumênica da criação. São Paulo: Loyola, 2008. Cap. I

domingo, 7 de setembro de 2014

A transparência divina na trama da criação

Frei Sinivaldo Tavares

Transcendente e imanente, na perspectiva cristã, se relacionam de maneira inusitada e deveras singular. Não seguem padrões dualistas típicos de tradições religiosas antigas nem de clássicas escolas de pensamento. No Ocidente, por exemplo, transcendente e imanente foram concebidos quase sempre como separados e opostos entre si. A alternativa a esta posição hegemônica acabou deslizando para o polo oposto: a fusão entre ambos, causando assim uma verdadeira confusão entre transcendente e imanente de modo a se sacrificar toda e qualquer distinção entre ambos.
Esta clássica polarização entre transcendente e imanente acabou gerando uma específica configuração: de um lado, temos as distintas formas de monoteísmo rígido com suas correspondentes cosmologias que desqualificam tudo o que é natural, histórico, humano e material. De outro, todavia, temos as conhecidas expressões de panteísmo que confundem criador com criatura, ocasionando uma série de incongruências.

Ao professar a fé no Deus trino e uno, as comunidades cristãs propiciam uma peculiar relação entre Transcendente e imanente. A profissão de fé no Deus Pai criador salienta o caráter absolutamente transcendente do Deus trino e uno. Ele é o criador absoluto, que cria sem pressupostos e sem condições, e, portanto, o Senhor de tudo quanto existe, selando assim sua irredutível transcendência face ao caráter contingencial de suas criaturas.

A profissão de fé no Filho unigênito de Deus que se encarnou, sublinha a singela solidariedade de Deus para com suas criaturas. O próprio Deus, na pessoa de seu Verbo encarnado, penetra no mais íntimo de uma de suas criaturas – o ser humano concreto e circunstanciado, Jesus de Nazaré – e, assim fazendo, instaura laços de profunda solidariedade com cada uma e com todas as criaturas. É o evento da mais radical irrupção do Todo no fragmento, da emergência do transcendente a partir do âmago mesmo da imanência.

A profissão de fé no Espírito Santo, como evento da interiorização do próprio Deus no coração mesmo da matéria, da história, da corporalidade de suas criaturas, acena para a revelação do Deus trino e uno como a interioridade mais íntima do cosmos, da história e da vida de cada uma e de todas as criaturas. Ocorre, portanto, dialetizar transcendência e imanência através da consideração do evento da interiorização do próprio Deus no coração mesmo da matéria, da história e dos corpos de suas criaturas. O evento da interioridade de Deus, mediante Seu Espírito, no coração mesmo de suas criaturas, impede toda e qualquer bipolaridade rígida e excludente entre transcendência e imanência. 

A profissão de fé no Deus trino e uno propicia aos cristãos, portanto, uma peculiar relação entre transcendente e imanente: nem pura transcendência, nem mera imanência, mas a celebração da transparência divina na trama da Criação.


Fonte: Conclusão do artigo publicado em Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 1, n. 2, p. 339-354

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Campanha eleitoral e a questão agrária

Nota da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

A Diretoria e a Coordenação Executiva Nacional da Comissão Pastoral da Terra unem sua voz à de milhares e milhares de indígenas, quilombolas, pescadores, ribeirinhos, camponeses e camponesas e trabalhadores e trabalhadoras rurais do Brasil, que expressam sua perplexidade e descrença diante do atual quadro político-eleitoral do momento. É frequente ouvir deles que nenhum candidato e nenhuma proposta se identifica com as suas necessidades e reivindicações
Vem crescendo uma justa revolta diante do conchavo permanente entre poderosos grupos econômicos privados, nacionais e estrangeiros, ruralistas, agroindustriais, mineradores, para ocupar e controlar cargos nas instituições públicas tanto do executivo, quanto do legislativo. Com isso objetivam influenciar leis e políticas públicas que facilitem a perpetuação do latifúndio e da grilagem, que retirem os direitos duramente conquistados pelos povos indígenas, comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais, e que flexibilizem os direitos trabalhistas, para garantir o lucro a qualquer custo para os investimentos e empreendimentos capitalistas.

Isso, que homens e mulheres do campo, das águas e das florestas percebem, fica claro na análise dos programas de governo dos candidatos que, em âmbito federal e estadual, disputam com possibilidades de sucesso as eleições. Todos eles exaltam a eficiência e importância do agronegócio, enquanto nem sequer reservam uma linha para a necessidade da reforma agrária, ou aqueles que a ela se referem, a colocam num plano insignificante. O máximo que os programas pontuam é algum tipo de apoio à agricultura familiar e uma insinuação à necessidade de uma agricultura agroecológica e saudável.
O resultado previsto, quaisquer sejam os vencedores, será a confirmação de um modelo de desenvolvimento que ameaça os territórios indígenas, quilombolas e camponeses, a continuidade da vida nos nossos biomas e os direitos trabalhistas. Um modelo de desenvolvimento que, no dizer de Maninha, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras, "traz sofrimento para nossas comunidades".

O próprio financiamento das campanhas eleitorais pelas grandes empresas é a expressão cabal do conluio capital/política. Qual será o interesse, por exemplo, das três empresas responsáveis, até o momento, por 65% do arrecadado pelos três principais candidatos à presidência da república, JBS (Friboi), Ambev (Cervejaria) e OAS Construtora, se elas estão envolvidas em denúncias e punições por violações aos direitos trabalhistas de seus funcionários, inclusive em situações análogas ao trabalho escravo?
Na contramão dos programas das agremiações partidárias, infelizmente hegemônicas, insistimos sobre a centralidade da Reforma Agrária. Trata-se de uma Reforma Agrária ressignificada, que vai além da mera distribuição de terras: é sonho e projeto que brota e floresce com as novas experiências e articulações dos indígenas e dos quilombolas, que defendem e retomam seus territórios, com a proposta de economias que defendam o futuro do Planeta, ameaçado pelo efeito estufa e mudanças climáticas, agroecologias como visão do mundo, aproveitamento das energias limpas, soberania e segurança alimentar respeitosas da Vida, moratórias que preservem o que sobra da Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica e Pampas, com suas bacias hidrográficas e aquíferos destruídos e constantemente agredidos.

Se não houver uma mudança radical no curso destas eleições, a CPT sente que elas não marcarão nenhum salto qualitativo em relação às grandes expectativas que o Brasil fez eclodir, com muita esperança, nas manifestações de junho de 2013 e nas mobilizações indígenas e camponesas deste último ano. Por isso conclama a todos quantos sentem a urgência de um Brasil novo, à participação no plebiscito popular a acontecer na semana da pátria, em vista da convocação de uma Constituinte soberana e independente para a construção de uma reforma política que abra espaço para organizações populares, de classe e de territórios. Estas representadas e presentes nas decisões mais importantes da vida do País, lutarão para que sejam reconhecidos e aceitos a autonomia e o protagonismo de grupos que resistem à massificação dos métodos do capital e propõem alternativas a um modelo de desenvolvimento elitista e falido.
Se a dimensão política é a "maneira de melhor exercer o maior mandamento do amor" (Papa Francisco, discurso do dia 10 de junho de 2013), cabe-nos, como Comissão Pastoral da Terra, denunciar as viciadas formas de exercer o poder que alimentam e fortalecem os grupos já poderosos, que agridem e ameaçam não só os direitos dos mais fracos, mas a própria Constituição brasileira.

Goiânia, 27 de agosto de 2014. Comissão Pastoral da Terra

Fonte: www.cptnacional.org.br

domingo, 24 de agosto de 2014

A criação com sistema aberto

O teólogo Jürgen Moltmann, no capítulo II de seu livro “Ciência e Sabedoria”, indica que existe uma crise na relação entre crença na criação e ciência natural desde o início da modernidade. Para conciliar ambas é preciso revisar o conceito teológico de criação e o conceito de natureza da ciência natural clássica. Segundo a compreensão protológica da escatologia, a redenção é o restabelecimento da boa criação original, que foi se deteriorando e envelhecendo pelo pecado. O teólogo opta por uma compreensão escatológica da criação, isto é, compreender a criação sob a luz da escatologia, a partir da qual ele faz uma revisão da doutrina da criação.
Compreender a criação como “sistema fechado” é exegeticamente impossível. A concepção da criação como um sistema perfeito em si e autossuficiente, como  resultado de um processo concluído é contrária à  “compreensão soteriológica da obra da criação” do povo de Israel. Num sistema fechado a história começa com o pecado original e termina com o restabelecimento da criação na redenção, o que leva os seres humanos de volta para o estado santo inicial. Mas a crença na criação surgiu da experiência histórica de Deus por parte de Israel. Daí que eles tiveram acesso à crença da criação através da história salvífica. Nesse sentido, a história de Deus com o mundo começa com a criação e não apenas depois do pecado original. A frase “no início Deus criou” (Gn 1) permite compreender a criação como um sistema aberto, já que a presença do tempo traz consigo sempre mudança, estrutura assimétrica,abertura ao futuro que não precisa ser o retorno do início perdido. Nessa visão, o ser humano está juntamente com todos os outros seres vivos no vir-a-ser do processo de criação ainda aberto, não-consumado.
A “creatio ex nihilo” (criação a partir do nada) é um ato sem pressupostos e designa a liberdade do criador e a contingência do ente; ela descreve o motivo positivo da criação a partir do desejo de Deus. A criação do tempo implica uma “criação mutabilis”, que não é perfeita, mas perfectível, pois é aberta para a história da perdição e da salvação, aberta para a corrupção e a consumação. Nesse contexto, a criação no início é a criação das condições para as possibilidades de sua história. É a criação aberta para o tempo e sua transformação no tempo. Disso se conclui que o ser humano foi criado como “possibilidade para”. Ele é determinado para a justiça, não para o pecado; para a glória, não para a morte. Mas ele pode se desencontrar dessa determinação de sua possibilidade. No sentido ético, isso pode ser designado como uma possibilidade que não deve ser realizada.
O povo de Israel tinha uma compreensão “criacionista” da salvação na história. A crença na criação está a serviço da crença na salvação, porque para esta a salvação surge de novas criações de Deus. Os acontecimentos de criação da história são atos livres de Deus e, nesse sentido, contingentes. Mas não são sem pressupostos como a criação no início. São representados como criação do novo a partir do velho, da salvação a partir da miséria, e da vida a partir das ossadas dos mortos. O criar divino da redenção é compreendido como esforço e trabalho, o criar da salvação para o povo ímpio provém do sofrimento do amor de Deus por seu povo. Nessa perspectiva, o pecado e a servidão são consequências do auto-isolamento de “sistemas abertos” em relação ao tempo e às suas possibilidades. E, ao contrário, a salvação na história se apresenta nas aberturas divinas de “sistemas fechados”. Se Deus cria graça para o pecador, ele o liberta de seu retraimento em si mesmo, liberta-o para a liberdade e para seu futuro. Como os sistemas fechados só podem ser abertos pela comunicação renovada com outros, a abertura a Deus ocorre pelo sofrimento de Deus devido ao isolamento do ser humano. Desse modo, a abertura humana para Deus é causada pela graça, e a graça surge do sofrimento do amor de Deus para com o homem fechado. Como Deus sofreu em Cristo nosso retraimento, ou seja, nossa morte, ele nos abre, pela ressurreição de Cristo, à plenitude de sua vida eterna. Para interpretar a salvação nessa perspectiva, devemos enxerga-la como abertura definitiva e universal do homem retraído e do retraimento “deste mundo” para a plenitude da vida divina.
A consumação do processo criacional no Reino da glória é concebida como morada de Deus na nova criação. O céu e a terra são novamente criados para que o próprio Deus habite neles. O ser humano e o mundo não são divinizados, mas tomam parte na vida divina; eles são finitos, mas não mais mortais. A consumação do processo da criação não deve ser pensada como fechamento definitivo do aberto e dos sistemas abertos. Se o processo criacional deve ser consumado pela habitação de Deus, então é inerente à nova criação a abundância ilimitada de possibilidades de Deus, e o ser humano glorificado é ilimitadamente livre em sua participação na liberdade ilimitada de Deus. No Reino da glória poderemos aceitar tempo e história, futuro e possibilidade, numa medida desimpedida e de maneira não mais ambígua. Como toda realização de possibilidade por sistemas abertos cria abertura para novas possibilidades, podemos imaginar o Reino da glória como a abertura de todos os sistemas vivos finitos para a infinitude de Deus. Isso inclui pensarmos o ser de Deus como a possibilitação transcendente de todas as realidades possíveis.
A compreensão da criação como um estado original, pronto e perfeito em si levou a ver em Gn 1,28 a verdadeira e essencial determinação do ser humano. Isso resultou numa ênfase unilateral da posição privilegiada do ser humano no cosmos que, com o impulso da técnica, resultou hoje na crise ecológica mundial. A interação entre ser humano e natureza escapa ao modelo de domínio e submissão. É necessário desenvolver um novo modelo “de comunicação e cooperação” que revele que a natureza é uma relação de sistemas vivos abertos com subjetividade própria.
Pela fé cristã, Cristo é o ‘verdadeiro ser humano’ e a ‘imagem de Deus’ na Terra. Ele não veio ‘para dominar, mas para servir’. Serviu a fim de libertar para a comunhão com Deus e para a abertura entre os seres humanos. Nessa perspectiva, Gn 1,28 deve ser interpretado de modo novo: não ‘dominai a terra’, mas ‘libertai a terra pela comunhão com ela’. A consequência disso para o ethos da sociedade humana é a reorientação da vontade de potência para a solidariedade, de luta pela existência para a paz na existência e de busca da felicidade para a comunidade.
O elemento mais importante para o posterior desenvolvimento da civilização é a justiça social, não o crescimento do poder econômico. A justiça social não pode ser alcançada sem justiça para o ambiente natural e vice-versa. Solidariedade e comunidade são os valores que tornam suportáveis o sofrimento inevitável e a renúncia necessária. A justiça é a forma da interdependência autêntica entre ser humano e natureza e entre sociedade e ambiente. Seu pressuposto é o reconhecimento da independência e da subjetividade do outro sistema de vida. O projeto de uma teoria escatológica da criação com auxílio da teoria de sistemas abertos e sua comunicação deve servir a essa tarefa, sem cuja realização o ser humano e a natureza não têm chance de sobrevivência.


Resumo de: MOLTMANN, Jürgen. Criação como sistema aberto. In: ______. Ciência e sabedoria. São Paulo: Loyola, 2007. p. 51-75, como atividade de PIBIC, bolsa da FAPEMIG, realizado por Gonzalo Benavides Mesones.

terça-feira, 29 de julho de 2014

A Grande Transformação

Leonardo Boff

Constatamos um fato singular: na medida em que crescem os danos à natureza que afetam mais e mais as sociedades e a qualidade de vida, cresce simultaneamente a consciência de que, na ordem de 90%, tais danos se tributam à atividade irresponsável e irracional dos seres humanos, mais especificamente, àquelas elites de poder econômico, político, cultural e mediático que se constituem em grandes corporações multilaterais e que assumiram por sua conta os rumos do mundo. Temos, com urgência, que fazer alguma coisa que interrompa este percurso para o precipício. Como adverte a Carta da Terra: "ou fazemos uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscamos a nossa destruição e a da diversidade da vida” (Preâmbulo).

A questão ecológica, especialmente após o Relatório do Clube de Roma em 1972 sob o título "Os Limites do Crescimento”, tornou-se tema central da política, das preocupações da comunidade científica mundial e dos grupos mais despertos e preocupados pelo nosso futuro comum.
O foco das questões se deslocou: do crescimento/desenvolvimento sustentável (impossível dentro da economia de mercado livre) para a sustentação de toda a vida. Primeiro há que se garantir a sustentabilidade do planeta Terra, de seus ecossistemas, das condições naturais que possibilitam a continuidade da vida. Somente garantidas estas pré-condições, se pode falar em sociedades sustentáveis e em desenvolvimento sustentável ou de qualquer outra atividade que queira se apresentar com este qualificativo.

A visão dos astronautas reforçou a nova consciência. De suas naves espaciais ou da Lua se deram conta de que Terra e a Humanidade formam uma única entidade. Elas não estão separadas nem justapostas. A Humanidade é uma expressão da Terra, a sua porção consciente, inteligente e responsável pela preservação das condições da continuidade da vida. Em nome desta consciência e desta urgência, surgiu o princípio responsabilidade (Hans Jonas), o princípio cuidado (Boff e outros), o princípio sustentabilidade (Relatório Brundland), o princípio interdependência, o princípio cooperação (Heisenberg/Wilson/Swimme/Morin/Capra) e o princípio prevenção/precaução (Carta do Rio de Janeiro de 1992 da ONU), oprincípio compaixão (Schoppenhauer/Dalai Lama) e o princípio Terra (Lovelock e Evo Morales).

A reflexão ecológica se complexificou. Não se pode reduzi-la apenas à preservação do meio ambiente. A totalidade do sistema mundo está em jogo. Assim, surgiu uma ecologia ambiental que tem como meta a qualidade de vida; uma ecologia social que visa um modo sustentável de vida e uma sobriedade compartida (produção, distribuição, consumo e tratamento dos dejetos); uma ecologia mental que se propõe erradicar preconceitos e visões de mundo, hostis à vida e formular um novo design civilizatório, à base de princípios e de valores para uma nova forma de habitar a Casa Comum; e, por fim, uma ecologia integral que se dá conta que a Terra é parte de um universo em evolução e que devemos viver em harmonia com o Todo, uno, complexo e perpassado de energias que sustentam a vitalidade da Terra e carregado de propósito.

Criou-se, destarte uma grelha teórica, capaz de orientar o pensamento e as práticas amigáveis à vida. Então, se torna evidente que a ecologia mais que uma técnica de gerenciamento de bens e serviços escassos representa uma arte, uma nova forma de relacionamento com a vida, a natureza e a Terra e a descoberta da missão do ser humano no processo cosmogênico e no conjunto dos seres: cuidar e preservar.
Por todas as partes do mundo, surgiram movimentos, instituições, organismos, ONGs, centro de pesquisa, cada qual com sua singularidade: quem se preocupa com as florestas, quem com os oceanos, quem com a preservação da biodiversidade, quem com as espécies em extinção, quem com os ecossistemas tão diversos, quem com as águas e os solos, quem com as sementes e a produção orgânica. Dentre todos estes movimentos cabe enfatizar o Greenpeace pela persistência e coragem de enfrentar, sob riscos, aqueles que ameaçam a vida e o equilíbrio da Mãe Terra.

A própria ONU criou uma série de instituições que visam acompanhar o estado da Terra. As principais são o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), a FAO (Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura), a OMS (Organização Mundial para a Saúde), a Convenção sobre a Biodiversidade e especialmente o IPPC (Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas) entre outras tantas.

Esta Grande Transformação da consciência opera uma complicada travessia, necessária para fundar um novo paradigma, capaz de transformar a eventual tragédia ecológico-social numa crise de passagem que nos permitirá um salto de qualidade rumo a um patamar mais alto de relação amistosa, harmoniosa e cooperativa entre Terra e Humanidade. Se não assumirmos esta tarefa o futuro comum estará ameaçado.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Forum Temático "Religião, ecologia e cidadania planetária" (foto)

Nesta tarde encerramos a programação de duas tardes do Fórum Temático ""Religião, ecologia e cidadania planetária", durante o Congresso Internacional da SOTER (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião), realizado na PUC Minas.
A programação foi postada neste blog. A reflexão foi diversificada, com contribuição da filosofia, da teologia e das ciências da religião. Textos completos serão publicados em breve no portal da SOTER.
A foto abaixo retrata o grupo que participou hoje.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Forum temático "Religião, ecologia e cidadania"

Estamos no 27º Congresso Internacional da SOTER (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião), que se realiza na PUC Minas.
Veja a programação do nosso Forum Temático "Religião, Ecologia e Cidadania Planetária"

Coordenadores: Prof. Dr. Afonso Murad – FAJE, MG; Prof. Dr. Luis Carlos Susin – PUC-RS; Prof. Dr. José Carlos Aguiar de Souza – ISTA e PUC Minas, Prof. Dr. Pedro A. Ribeiro de Oliveira – PUC Minas, MG
O FT visa dar continuidade ao trabalho realizado desde 2011, priorizando questões teóricas e experiências relevantes na relação entre Religião, ecologia e cidadania planetária. Serão aceitas comunicações que (1) abordem problemas teóricos envolvidos no debate atual, (2) analisem experiências de formação da consciência ecológica/planetária, (3) apresentem dados de pesquisa empírica sobre o assunto, (4) reflitam sobre as imagens de Deus e a espiritualidade que afloram de práticas em favor da sustentabilidade. Os temas deverão favorecer a discussão sobre a contribuição da religião para a cidadania planetária e o “bem viver”. As comunicações serão realizadas juntamente com o seminário do grupo de pesquisa MODERNIDADE, RELIGIÃO E ECOLOGIA. Tempo de cada exposição: 15 minutos, seguido de 5 minutos para discussão.
Dia 16/07/2014

14:00 Ciência moderna e racionalismo filosófico: o problema ecológico (Felipe L Correia Luz)
14:20 A questão de um ethos mundial nos escritos de Leonardo Boff (Gabriel do nascimento Vieira)
14:40 Bioconsciência e cidadania: coleta seletiva e seus desafios para o recolhimento    dos resíduos sólidos gerados na unidade escolar Funec-Oitís e famílias do entorno. (Gilson Ramos Faria)
15:00 "A guerra das águas" e a ecologia da paz: uma nova hermenêutica (José Carlos A. Souza)
15:20 "Acaso Deus se preocupa com os bois" (1Cor 9,9): os animais e teologia de Santo Tomás de Aquino (Reginaldo José Horta)
15:40 - INTERVALO
16:00 Ética e autenticidade na filosofia de Jean-Paul Sartre: pressupostos de uma      religiosidade planetária, cidadã e ecológica para o século XXI (Durval Baranowske)
16: 20 A dimensão ecológica no semi-árido nordestino na visão de Padre Cícero (José Rocha C. Filho)
16:40 Síntese do dia.

Dia: 17/07/2014

14:00 Ecoteologia: aproximação conceitual (Afonso Murad)
14:20 A teologia da consciência cósmica em Máximo o confessor (Getúlio Bertelli)
14:40 A religiosidade holística e o pensamento complexo (Maria C. P. Hernandez)
15:00 Espiritualidade e consciência planetária (Josinaldo Dantas da Silva)
15:20 Espiritualidade e preservação: uma conversão à beleza (Douglas J. Arão)
15:40 Intervalo
16:00 Seminários evangélicos e educação ambiental (Angela Maringoli)
16:20 "Comei de tudo ... porque do senhor é a terra e a plenitude": ecoteologia sob
            a perspectiva da alimentação (William K. de Oliveira)
 16:40 Ética e espiritualidade biocêntricas: a contribuição de L. Boff (Luis Eduardo Pinto)
 17:00 Síntese do FT e prospectivas.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Teólogos e cientistas naturais no caminho da sabedoria

No seu texto “Teólogos e cientistas naturais no caminho da sabedoria”, o teólogo Jürgen Moltmann reflete sobre a colaboração entre as ciências naturais e a teologia partindo da seguinte pergunta: Em que áreas as ciências naturais e as religiões se encontram e travam um diálogo produtivo visando a uma cooperação benéfica à vida?
Segundo ele, o diálogo entre a ‘ciência natural pura’ e ‘teologia científica’ tem um sucesso limitado por dois motivos. Primeiro, porque ele não promete nenhum ganho de conhecimento aos cientistas naturais em seu próprio campo; e segundo, porque falta a muitos cientistas e teólogos a filosofia como plano mediador. Como consequência, muitas vezes se usam conceitos que não são refletidos criticamente e, por isso, não são compreendidos. Nesse sentido, para conseguir uma influência recíproca de ciência natural e teologia científica podem se procurar planos mediadores numa abrangente teoria filosófica da ciência ou numa hermenêutica geral da história. Isso permitiria assimilar e interpretar experiências da natureza como experiências transcendentes.
Tentativa interessante nessa direção é feita pelos cientistas incentivados a elaborar pensamentos religiosos sem vinculá-los à determinada religião, e também pelos teólogos que, por causa e para além de sua teologia, tem pensamento científico-natural. Mas nem sempre é fácil achar a harmonia desejada entre a experiência científica da natureza, que é universal, objetiva e repetível e a experiência religiosa, que é comunitária, subjetiva e irrepetível. Diante dessa dificuldade, Moltmann se pergunta se não seria esse conceito amplo e multívoco de experiência um plano mediador para o geral e o particular, o regular e o contingente.
Outra tentativa consiste nos esforços para relacionar ‘ciências naturais’ e ‘ética’. Moltmann afirma que a pesquisa científica é, sem dúvida, objetiva, mas não “livre de valores”, já que ela se submete a determinados interesses na sociedade. Nesse sentido, o ethos inerente do progresso técnico-científico tem sua própria dinâmica e, infelizmente, no seu desenvolvimento, no lugar do velho otimismo do progresso entrou o fatalismo, que não permite, no fundo, nenhuma alternativa ética. Por isso, as ciências naturais, em especial as biociências, devem ser compreendidas em seu contexto econômico-social (complexo científico-técnico-industrial). Então, perguntar-se se esse complexo é sábio, quer dizer, se está a serviço da vida.
Outro intento de articular ciência natural e teologia no contexto da vida comum é efetuada no plano da sabedoria, seguindo a tradição antiga para a qual todo saber está incrustado na sabedoria da vida. A phrónesis ou sabedoria prática abarca saber e moral, de modo que o ser humano aprende a lidar sabiamente com seu conhecimento e a relacionar de modo realista sua moral à realidade conhecida. É somente pelas experiências, positivas e negativas, que ficamos sábios, enquanto permanecemos interessados pela vida.
A revolução científica moderna desvinculou as ciências desse contexto amplo e compreendeu a razão científica como “razão instrumental”, isto é, como poder sobre a natureza e sobre a vida própria, ocasionando a emancipação e separação das ciências naturais da sabedoria. Uma teologia emancipada da sabedoria se fundamenta total e exclusivamente na auto-revelação de Deus ou na autocerteza da fé, e em consequência do conflito “razão-revelação” surge a controvérsia sobre a justiça ou injustiça da “teologia natural”.
O autor sustenta que não deve haver concorrência entre teologia da revelação e teologia natural. Por um lado, a teologia natural, por meio da qual o ser humano se torna sábio, reconhece Deus como criador a partir da mesma criação. Por outro lado, é pela teologia da revelação, que se oferece o conhecimento da revelação de Deus, do Salvador, que o ser humano se torna bem-aventurado. Então, sendo ambas as teologias complementares, se deduz que a fé e a razão podem habitar a mesma casa da sabedoria e contribuir, cada uma a seu modo, para a construção desse edifício, numa cultura com experiência de vida.
Na procura da sabedoria, o ser humano descobre e aprende. São necessárias as observações e os experimentos das ciências naturais, não apenas para colher informações, mas também para aprender com a sabedoria que é inerente à natureza. Pois existe um complexo processo de aprendizagem do ser vivo e uma antiquíssima memória armazenada na estrutura da matéria e nos estágios do orgânico. Uma ciência intervencionista, que não procura a sabedoria, mas unicamente saber o que se pode “fazer” com o objeto conhecido ou como modificá-lo para ser útil, emudece a natureza e emburrece o ser humano.
Moltmann conclui que a busca pela sabedoria da vida humana cria um diálogo entre a sabedoria natural descoberta e a sabedoria humana a ser aprendida. A sabedoria humana procurará a conciliação entre a cultura humana e os ecossistemas da Terra, cuja meta é um acordo com a natureza que lide de forma inteligente com a vida. Esse acordo começa com o respeito à antiquíssima memória da vida nos processos naturais e a “reverência à vida” como o mandamento supremo que deriva do “direito à vida”.

Resumo de: MOLTMANN, Jürgen. Teólogos e cientistas naturais no caminho da sabedoria. In: ______. Ciência e sabedoria. São Paulo: Loyola, 2007. p. 41-47, como atividade de PIBIC, bolsa da FAPEMIG, realizado por Gonzalo Benavides Mesones.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Oficina Espiritualidade e Ecologia

Durante o 1º Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora, em Fortaleza, de 1 a 4 de maio de 2014, realiza-se a Oficina "Espiritualidade e Ecologia".
Os 27 jovens e adultos participantes se envolveram nas atividades, nas discussões e na convivência, formando rapidamente um grupo em sintonia.

terça-feira, 15 de abril de 2014

A paz perene com a Mãe Terra

Leonardo Boff

Um dos legados mais fecundos de Francisco de Assis e atualizado por Francisco de Roma é a pregação da paz, tão urgente nos dias atuais. A primeira saudação que São Francisco dirigia aos que encontrava era desejar “Paz e Bem” que corresponde ao Shalom bíblico. A paz que ansiava não se restringia às relações inter-pessoais e sociais. Buscava uma paz perene com todos os elementos da natureza, tratando-os com o doce nome de irmãos e irmãs.

Especialmente a "irmã e Mãe Terra”, como dizia, deveria ser abraçada pelo amplexo da paz. Seu primeiro biógrafo Tomás de Celano resume maravilhosamente o sentimento fraterno do mundo que o invadia ao testemunhar: “Enchia-se de inefável gozo todas as vezes que olhava o sol, contemplava a lua e dirigia sua vista para as estrelas e o firmamento. Quando se encontrava com as flores, pregava-lhes como se fossem dotadas e inteligência e as convidava a louvar a Deus. Fazia-o com terníssima e comovedora candura: exortava à gratidão os trigais e os vinhedos, as pedras e as selvas, a plantura dos campos e as correntes dos rios, a beleza das hortas, a terra, o fogo, o ar e o vento”.

Esta atitude de reverência e de enternecimento levava-o a recolher as minhocas dos caminhos para não serem pisadas. No inverno dava mel às abelhas para que não morressem de escassez e de frio. Pedia aos irmãos que não cortassem as árvores pela raiz, na esperança de que pudessem se regenerar. Até as ervas daninhas deveriam ter um lugar reservado nas hortas, para que pudessem sobreviver, pois “elas também anunciam o formosíssimo Pai de todos os seres”.
Só pode viver esta intimidade com todos os seres quem escutou sua ressonância simbólica dentro da alma, unindo a ecologia ambiental com a ecologia profunda; jamais se colocou acima das coisas, mas ao pé delas, verdadeiramente como quem convive como irmão e irmã, descobrindo os laços de parentesco que une a todos.

O universo franciscano e ecológico nunca é inerte nem as coisas estão jogadas aí, ao alcance da mão possessora do ser humano ou justapostas uma ao lado da outra, sem interconexões entre elas. Tudo compõe uma grandiosa sinfonia cujo maestro é o próprio Criador. Todas são animadas e personalizadas; por intuição descobriu o que sabemos atualmente por via científica (Crick e Dawson, os que decifraram o DNA) que todos os viventes somos parentes, primos, irmãos e irmãs, por possuirmos o mesmo código genético de base. Francisco experimento espiritualmente esta consanguinidade. Desta atitude nasceu uma imperturbável paz, sem medo e sem ameaças, paz de quem se sente sempre em casa com os pais, os irmãos e as irmãs.

São Francisco realizou plenamente a esplêndida definição que a Carta da Terra encontrou para a paz: “é aquela plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com as outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual somos parte”(n.16 f). O Papa Francisco parece ter realizado as condições para a paz que irradia.
A suprema expressão da paz, feita de convivência fraterna e acolhida calorosa de todas as pessoas e coisas é simbolizada pelo conhecido relato da perfeita alegria. Através de um artifício da imaginação, Francisco apresenta todo tipo de injúrias e violências contra dois confrades (um deles é ele próprio, Francisco). Encharcados de chuva e de lama, chegam, exaustos, ao convento. Aí são rechaçados a bastonadas (“batidos com um pau de nó em nó”) pelo frade porteiro. Embora tenham sido reconhecidos como confrades, são vilipendiados moralmente e rejeitados como gente de má fama.

No relato da perfeita alegria, que encontra paralelos na tradição budista, Francisco vai, passo a passo, desmontando os mecanismos que geram a cultura da violência. A verdadeira alegria não está na autoestima, nem na necessidade de reconhecimento, nem em fazer milagres e falar em línguas. Em seu lugar, coloca os fundamentos da cultura da paz: o amor, a capacidade de suportar as contradições, o perdão e a reconciliação para além de qualquer pressuposição ou exigência prévia. Vivida esta atitude, irrompe a paz que é uma paz interior inalterável, capaz de conviver jovialmente com as mais duras oposições, paz como fruto de completo despojamento. Não são essas as primícias de um Reino de justiça, de paz e de amor que tanto desejamos?

Esta visão da paz de São Francisco representa  outro modo de ser-no-mundo, uma alternativa ao modo de ser da modernidade e das pós-modernidade, assentado sobre a posse e o uso desrespeitoso das coisas para o desfrute humano sem qualquer outra consideração.
Embora tenha vivido há mais de oitocentos anos, novo é ele e não nós. Nós somos velhos e envelhecidos que com a nossa voracidade estamos destruindo as bases que sustentam a vida em nosso planeta e pondo em risco o nosso futuro como espécie. A descoberta da irmandade cósmica nos ajudará a sair da crise e nos devolverá a inocência perdida que é a claridade infantil da idade adulta.

Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2014/04/12/a-paz-perene-com-a-natureza-e-a-mae-terra-2/

sábado, 5 de abril de 2014

Bem Viver: nova forma de existência e de organização da sociedade

De acordo com David Choquehuanca, especialista em cosmovisão andina, o Viver Bem (ou Bem Viver) é um processo que está apenas começando e que pouco a pouco irá se massificando. “Para os que pertencem à cultura da vida, o mais importante não é o dinheiro nem o ouro, nem o ser humano, porque ele está em último lugar. O mais importante são os rios, o ar, as montanhas, as estrelas, as formigas, as borboletas (...) O ser humano está em último lugar. Mas, para nós o mais importante é a vida”.

(1) O Viver Bem dá prioridade à natureza mais que ao ser humano
Estas são as características que pouco a pouco serão implementadas no novo Estado Plurinacional
Priorizar a vida: Viver Bem é buscar a vivência em comunidade, onde todos os integrantes se preocupam com todos. O mais importante não é o ser humano (como afirma o socialismo) nem o dinheiro (como postula o capitalismo), mas a vida. Pretende-se buscar uma vida mais simples. Que seja o caminho da harmonia com a natureza e a vida, com o objetivo de salvar o planeta e dar a prioridade à humanidade.
Obter acordos consensuados: Viver Bem é buscar o consenso entre todos, o que implica que mesmo que as pessoas tenham diferenças, na hora de dialogar se chegue a um ponto de neutralidade em que todas coincidam e não se provoquem conflitos. “Não somos contra a democracia, mas o que faremos é aprofundá-la, porque nela existe também a palavra submissão e submeter o próximo não é viver bem”.
Respeitar as diferenças: Viver Bem é respeitar o outro, saber escutar todo aquele que deseja falar, sem discriminação ou qualquer tipo de submissão. Não se postula a tolerância, mas o respeito, já que, mesmo que cada cultura ou região tenha uma forma diferente de pensar, para viver bem e em harmonia é necessário respeitar essas diferenças. Esta doutrina inclui todos os seres que habitam o planeta, como os animais e as plantas.
Viver em complementaridade: Viver Bem é priorizar a complementaridade, que postula que todos os seres que vivem no planeta se complementam uns com os outros. Nas comunidades, a criança se complementa com o avô, o homem com a mulher, etc. O homem não deve matar as plantas, porque elas complementam a sua existência e ajudam para que sobreviva.
Equilíbrio com a natureza: Viver Bem é levar uma vida equilibrada com todos os seres dentro de uma comunidade. Assim como a democracia, a justiça também é considerada excludente, porque só leva em conta as pessoas dentro de uma comunidade e não o que é mais importante: a vida e a harmonia do ser humano com a natureza. É por isso que Viver Bem aspira a ter uma sociedade com equidade e sem exclusão.
Defender a identidade: Viver Bem é valorizar e recuperar a identidade. Dentro do novo modelo, a identidade dos povos é muito mais importante do que a dignidade. A identidade implica em desfrutar plenamente de uma vida baseada em valores que resistiram mais de 500 anos (desde a conquista espanhola) e que foram legados pelas famílias e comunidades que viveram em harmonia com a natureza e o cosmos.

(2) Um dos principais objetivos do Viver Bem é retomar a unidade de todos os povos
O saber comer, beber, dançar, comunicar-se e trabalhar também são alguns aspectos fundamentais.
Aceitar as diferenças: Viver Bem é respeitar as semelhanças e diferenças entre os seres que vivem no mesmo planeta. Ultrapassa o conceito da diversidade. “Não há unidade na diversidade, mas é semelhança e diferença, porque quando se fala de diversidade só se fala de pessoas. Esta colocação se traduz em que os seres semelhantes ou diferentes jamais devem se ofender.
Priorizar direitos cósmicos: Viver Bem é dar prioridade aos direitos cósmicos antes que aos Direitos Humanos. Quando o Governo fala de mudança climática, também se refere aos direitos cósmicos “Por isso Evo Morales diz que será mais importante falar sobre os direitos da Mãe Terra do que falar sobre os direitos humanos”.
Saber comer: Viver Bem é saber alimentar-se, saber combinar os alimentos adequados a partir das estações do ano (alimentos de acordo com a época). Esta consigna deve se reger com base na prática dos ancestrais que se alimentam com um determinado produto durante toda a estação. Comenta que alimentar-se bem garante boa saúde.
Saber beber: Viver Bem é saber beber álcool com moderação. Nas comunidades indígenas cada festa tem um significado e o álcool está presente na celebração, mas é consumido sem exageros ou ofender alguém. “Temos que saber beber; em nossas comunidades tínhamos verdadeiras festas que estavam relacionadas com as estações do ano. Não é ir a uma cantina e se envenenar com cerveja e matar os neurônios”.
Saber dançar: Viver Bem é saber dançar [danzar], não simplesmente saber bailar [bailar]. A dança se relaciona com alguns fatos concretos, como a colheita ou o plantio. As comunidades continuam honrando com dança e música a Pachamama, principalmente em épocas agrícolas; entretanto, nas cidades as danças originárias são consideradas expressões folclóricas. Na nova doutrina se renovará o verdadeiro significado do dançar.
Saber trabalhar: Viver Bem é considerar o trabalho como festa. “O trabalho para nós é felicidade”. Ao contrário do capitalismo onde se paga para trabalhar, no novo modelo do Estado Plurinacional, se retoma o pensamento ancestral de considerar o trabalho como festa. É uma forma de crescimento, é por isso que nas culturas indígenas se trabalha desde pequeno.
Retomar o Abya Yala: Viver bem é promover a união de todos os povos em uma grande família. Isto implica em que todas as regiões do país se reconstituam no que ancestralmente se considerou como uma grande comunidade. “Isto tem que se estender a todos os países. É por isso que vemos bons sinais de presidentes que estão na tarefa de unir todos os povos e voltar a ser o Abya Yala que fomos”.
Reincorporar a agricultura: Viver Bem é reincorporar a agricultura às comunidades. Parte desta doutrina do novo Estado Plurinacional é recuperar as formas de vivência em comunidade, como o trabalho na terra, cultivando produtos para cobrir as necessidades básicas para a subsistência. Neste ponto se fará a devolução de terras às comunidades, de maneira que se produzam as economias locais.
Saber se comunicar: Viver Bem é saber se comunicar. No novo Estado Pluninacional se pretende retomar a comunicação que existia nas comunidades ancestrais. O diálogo é o resultado desta boa comunicação. “Temos que nos comunicar como antes os nossos pais o faziam, e resolviam os problemas sem que se apresentassem conflitos, não temos que perder isso”.

(3) O Viver Bem não é “viver melhor”, como propugna o capitalismo
Entre os preceitos estabelecidos pelo novo modelo do Estado Plurinacional, figuram o controle social, a reciprocidade e o respeito à mulher e ao idoso.
Controle social: Viver Bem é realizar um controle obrigatório entre os habitantes de uma comunidade. “Este controle é diferente do proposto pela Participação Popular, que foi rechaçado (por algumas comunidades) porque reduz a verdadeira participação das pessoas”. Nos tempos ancestrais, “todos se encarregavam de controlar as funções que suas principais autoridades realizavam”.
Trabalhar em reciprocidade: Viver Bem é retomar a reciprocidade do trabalho nas comunidades. Nos povos indígenas esta prática se denomina ayni, que não é mais do que devolver em trabalho a ajuda prestada por uma família em uma atividade agrícola, como o plantio ou a colheita. “É mais um dos princípios ou códigos que garantirão o equilíbrio nas grandes secas”, explica o Ministro das Relações Exteriores.
Não roubar e não mentir: Viver Bem é basear-se no ama suwa e ama qhilla (não roubar e não mentir, em quéchua). É fundamental que dentro das comunidades se respeitem estes princípios para conseguir o bem-estar e confiança em seus habitantes. “Todos são códigos que devem ser seguidos para que consigamos viver bem no futuro”.
Proteger as sementes: Viver Bem é proteger e guardar as sementes para que no futuro se evite o uso de produtos transgênicos. Uma das características deste novo modelo é preservar a riqueza agrícola ancestral com a criação de bancos de sementes que evitem a utilização de transgênicos para incrementar a produtividade, porque se diz que esta mistura com químicos prejudica e acaba com as sementes milenares.
Respeitar a mulher: Viver Bem é respeitar a mulher, porque ela representa a Pachamama, que é a Mãe Terra que tem a capacidade de dar vida e de cuidar de todos os seus frutos. Por estas razões, dentro das comunidades, a mulher é valorizada e está presente em todas as atividades orientadas à vida, à criação, à educação e à revitalização da cultura. Os moradores das comunidades indígenas valorizam a mulher como base da organização social, porque transmitem aos seus filhos os saberes de sua cultura.
Viver Bem e NÃO melhor: Viver Bem é diferente de viver melhor, o que se relaciona com o capitalismo. Para a nova doutrina do Estado Plurinacional, viver melhor se traduz em egoísmo, desinteresse pelos outros, individualismo e pensar somente no lucro. Considera que a doutrina capitalista impulsiona a exploração das pessoas para a concentração de riquezas em poucas mãos, ao passo que o Viver Bem aponta para uma vida simples, que mantém uma produção equilibrada.
Recuperar recursos: Viver Bem é recuperar a riqueza natural do país e permitir que todos se beneficiem desta de maneira equilibrada e equitativa. A finalidade da doutrina do Viver Bem também é a de nacionalizar e recuperar as empresas estratégicas do país no marco do equilíbrio e da convivência entre o ser humano e a natureza em contraposição à exploração irracional dos recursos naturais.
Exercer a soberania: Viver Bem é construir, a partir das comunidades, o exercício da soberania no país. Isto significa que se chegará a uma soberania por meio do consenso comunal que defina e construa a unidade e a responsabilidade a favor do bem comum, sem que nada falte. Nesse marco, se reconstruirão as comunidades e nações para construir uma sociedade soberana que será administrada em harmonia com o indivíduo, a natureza e o cosmos.
Aproveitar a água: Viver Bem é distribuir racionalmente a água e aproveitá-la de maneira correta. A água é o leite dos seres que habitam o planeta. “Temos muitas coisas, recursos naturais, água e, por exemplo, a França não tem a quantidade de água nem a quantidade de terra que há em nosso país, mas vemos que não há nenhum Movimento Sem Terra, assim que devemos valorizar o que temos e preservá-lo o melhor possível, isso é Viver Bem”.
Escutar os anciãos: Viver Bem é ler as rugas dos avós para poder retomar o caminho. Uma das principais fontes de aprendizagem são os anciãos das comunidades, que guardam histórias e costumes que com o passar dos anos vão se perdendo. “Nossos avós são bibliotecas ambulantes, assim que devemos aprender com eles”, menciona. Portanto, os anciãos são respeitados e consultados nas comunidades indígenas do país.

Fonte: Dossiê Bem-viver, ISER Assessoria e IHU.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Ecoteologia e evangélicos

Thiago Gigo Pereira – (Revista Ultimato)

A Igreja evangélica (que vive o Evangelho) brasileira tem omitido temas muito pertinentes para a contemporaneidade, como por exemplo, o crescimento sustentável ou a Ecoteologia. Provavelmente porque temos muitos líderes que nada se preocupam com as causas ambientais; fomentam, unilateralmente, uma cosmovisão espiritualizada e longe das realidades vitais da sociedade, das quais a manutenção e cuidado da criação de Deus são necessidades fundamentais. A Terra agoniza pela ação do homem; o aquecimento global, a extinção dos animais e o fim dos recursos naturais são demonstração do poder do pecado e do egoísmo humano.
A Igreja de Cristo deve ser coerente com os valores bíblicos que diz praticar e comprometida com Deus, que diz servir. As Escrituras ensinam que o que Deus criou “é bom” – não porque a Terra pode saciar os interesses humanos de consumo desenfreado, mas porque é bom e benéfico aquilo que Deus faz no e pelo Planeta. Gênesis 1:31 E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom.
Não há a mínima semelhança entre o Deus da Bíblia e o deus do capitalismo hodierno, que consome desenfreadamente, tudo o que vê pela frente. Não que o capitalismo deva ser totalmente demonizado, entretanto o crescimento econômico a qualquer custo abre portas para o oportunismo predatório. O homem perdeu os limites de sua atuação e a extração dos materiais primários da natureza beira a demência. Há uma pregação constante para “crescer” nos discursos políticos.
O Cristão não pode se esquecer que muitos problemas do descontrole climático e também sociais, são causas de uma mentalidade psicopatológica, obsessiva e gananciosa do homem. Antes de crescer é preciso discutir o que o desenvolvimentismo causou, sobretudo no Brasil. É necessária uma avaliação da ação da igreja, das políticas e da sociedade em geral diante da ânsia do crescimento moderno. Erramos muito até aqui e não podemos continuar com essas aberrações comportamentais, muito menos nos omitir.

Algumas problemáticas, também assinaladas na Ecoteologia de Leonardo Boff, são exigências de reflexão aprofundada sobre o assunto, que muitas vezes, é preterido pela Igreja. Há mais de 400 anos que a cosmovisão desenvolvimentista assola o planeta a partir do desencadeamento da revolução industrial. O ser humano quer absorver tudo o que a terra fornece. Os recursos naturais estão se extinguindo. Os combustíveis fósseis, recursos minerais e a água estão acabando. Assim como tivemos guerras pelo petróleo, não seria um devaneio imaginar lutas dos povos pela água.
O grande problema é que o homem se vê como centro de tudo na criação e soberano sobre os recursos primários. O antropocentrismo fecha as portas para o desenvolvimento sustentável. Por isso a Bíblia ensina que Deus é Soberano, sobre tudo e todos. Ele é o Dono, proprietário absoluto do universo e deu á humanidade o privilégio de administrar o planeta. Todavia essa ecoadministração não deve ser feita inescrupulosamente. O que vemos é que o crescimento a qualquer custo faz do homem um parasitóide consumidor dos benefícios da criação de maneira indiscriminada. O ser humano, enfim, se revela como uma besta-fera da terra procurado destruir o que vê pelo caminho (com todo respeito as bestas) como se tivesse tal liberdade para devastar o que Deus criou com tanto zelo.
Essa falta de consciência ecoteológica e o culto ao capitalismo selvagem têm levado muitos cristãos a distúrbios comportamentais luciferianos e de verdadeiros “anticristos”, na maneira de agir. Quando uma pessoa joga material não biodegradável no chão, peca contra a criação e contra o Criador.
Não tenho visto pregadores da TV e arrebatadores de multidões pregarem sobre o pecado da anti-sustentabilidade ecológica. O Cristo do cristão se preocupa com os animais, a mata, a semente, o solo, a água e também com o bem estar da sociedade. Jesus Cristo sempre utilizou as parábolas para ensinar, um recurso hermenêutico abundante na Bíblia, bem como na cultura semita. As coisas simples e aparentemente desprezíveis eram ressaltadas por Jesus na sua linguagem ecoteológica.

O meio vivencial de Jesus era rural; sobretudo para quem vem da periferia, da Galiléia, o meio ambiente é fundamental para o bem estar da sociedade. Não somente por isso, mas porque Jesus Cristo é agente da criação: “Porque Nele (em Cristo), foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e invisíveis, sejam tronos, soberanias, poderes e autoridades; todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele” (Cl 1:16). Por isso Seu discurso é muito diferente dos oportunistas que angariam votos nas eleições através das falácias populistas que desprezam o crescimento sustentável. O futuro da nação brasileira e do planeta "está em nossas mãos".
A posteridade não terá seu lugar ao sol? Ou onde viverão será apenas o resultado da falta de consciência da atualidade? É preciso haver não apenas um amor pelo próximo, mas também um amor cósmico.
Fonte: Revista Ultimato (versão digital)