O teólogo Jürgen Moltmann, no capítulo II de seu livro
“Ciência e Sabedoria”, indica que existe uma crise na relação entre crença na
criação e ciência natural desde o início da modernidade. Para conciliar ambas é
preciso revisar o conceito teológico de criação e o conceito de natureza da
ciência natural clássica. Segundo a compreensão protológica da escatologia, a
redenção é o restabelecimento da boa criação original, que foi se deteriorando
e envelhecendo pelo pecado. O teólogo opta por uma compreensão escatológica da
criação, isto é, compreender a criação sob a luz da escatologia, a
partir da qual ele faz uma revisão da doutrina da criação.
Compreender a criação como “sistema fechado” é
exegeticamente impossível. A concepção da criação como um sistema perfeito em
si e autossuficiente, como resultado de
um processo concluído é contrária à “compreensão
soteriológica da obra da criação” do povo de Israel. Num sistema fechado a
história começa com o pecado original e termina com o restabelecimento da
criação na redenção, o que leva os seres humanos de volta para o estado santo
inicial. Mas a crença na criação surgiu da experiência histórica de Deus por
parte de Israel. Daí que eles tiveram acesso à crença da criação através da
história salvífica. Nesse sentido, a história de Deus com o mundo começa com a
criação e não apenas depois do pecado original. A frase “no início Deus criou” (Gn
1) permite compreender a criação como um sistema aberto, já que a presença do
tempo traz consigo sempre mudança, estrutura assimétrica,abertura ao futuro que
não precisa ser o retorno do início perdido. Nessa visão, o ser humano está
juntamente com todos os outros seres vivos no vir-a-ser do processo de criação
ainda aberto, não-consumado.
A “creatio ex nihilo” (criação a partir do nada) é um
ato sem pressupostos e designa a liberdade do criador e a contingência do ente;
ela descreve o motivo positivo da criação a partir do desejo de Deus. A criação
do tempo implica uma “criação mutabilis”, que não é perfeita, mas perfectível,
pois é aberta para a história da perdição e da salvação, aberta para a
corrupção e a consumação. Nesse contexto, a criação no início é a criação das condições para as possibilidades
de sua história. É a criação aberta para o tempo e sua transformação no tempo.
Disso se conclui que o ser humano foi criado como “possibilidade para”. Ele é
determinado para a justiça, não para o pecado; para a glória, não para a morte.
Mas ele pode se desencontrar dessa determinação de sua possibilidade. No
sentido ético, isso pode ser designado como uma possibilidade que não deve ser
realizada.
O povo de Israel tinha uma compreensão “criacionista”
da salvação na história. A crença na criação está a serviço da crença na
salvação, porque para esta a salvação surge de novas criações de Deus. Os
acontecimentos de criação da história
são atos livres de Deus e, nesse sentido, contingentes. Mas não são sem
pressupostos como a criação no início. São representados como criação do novo a
partir do velho, da salvação a partir da miséria, e da vida a partir das
ossadas dos mortos. O criar divino da redenção é compreendido como esforço e
trabalho, o criar da salvação para o povo ímpio provém do sofrimento do amor de
Deus por seu povo. Nessa perspectiva, o pecado e a servidão são consequências
do auto-isolamento de “sistemas abertos” em relação ao tempo e às suas
possibilidades. E, ao contrário, a salvação na história se apresenta nas
aberturas divinas de “sistemas fechados”. Se Deus cria graça para o pecador,
ele o liberta de seu retraimento em si mesmo, liberta-o para a liberdade e para
seu futuro. Como os sistemas fechados só podem ser abertos pela comunicação
renovada com outros, a abertura a Deus ocorre pelo sofrimento de Deus devido ao
isolamento do ser humano. Desse modo, a abertura humana para Deus é causada
pela graça, e a graça surge do sofrimento do amor de Deus para com o homem
fechado. Como Deus sofreu em Cristo nosso retraimento, ou seja, nossa morte,
ele nos abre, pela ressurreição de Cristo, à plenitude de sua vida eterna. Para
interpretar a salvação nessa perspectiva, devemos enxerga-la como abertura
definitiva e universal do homem retraído e do retraimento “deste mundo” para a
plenitude da vida divina.
A consumação do
processo criacional no Reino da glória é concebida como morada de Deus na
nova criação. O céu e a terra são novamente criados para que o próprio Deus
habite neles. O ser humano e o mundo não são divinizados, mas tomam parte na
vida divina; eles são finitos, mas não mais mortais. A consumação do processo
da criação não deve ser pensada como fechamento definitivo do aberto e dos
sistemas abertos. Se o processo criacional deve ser consumado pela habitação de
Deus, então é inerente à nova criação a abundância ilimitada de possibilidades
de Deus, e o ser humano glorificado é ilimitadamente livre em sua participação
na liberdade ilimitada de Deus. No Reino da glória poderemos aceitar tempo e
história, futuro e possibilidade, numa medida desimpedida e de maneira não mais
ambígua. Como toda realização de possibilidade por sistemas abertos cria
abertura para novas possibilidades, podemos imaginar o Reino da glória como a
abertura de todos os sistemas vivos finitos para a infinitude de Deus. Isso
inclui pensarmos o ser de Deus como a possibilitação transcendente de todas as
realidades possíveis.
A compreensão da criação como um estado original,
pronto e perfeito em si levou a ver em Gn 1,28 a verdadeira e essencial
determinação do ser humano. Isso resultou numa ênfase unilateral da posição
privilegiada do ser humano no cosmos que, com o impulso da técnica, resultou
hoje na crise ecológica mundial. A interação entre ser humano e natureza escapa
ao modelo de domínio e submissão. É necessário desenvolver um novo modelo “de
comunicação e cooperação” que revele que a natureza é uma relação de sistemas
vivos abertos com subjetividade própria.
Pela fé cristã, Cristo é o ‘verdadeiro ser humano’ e a
‘imagem de Deus’ na Terra. Ele não veio ‘para dominar, mas para servir’. Serviu
a fim de libertar para a comunhão com Deus e para a abertura entre os seres
humanos. Nessa perspectiva, Gn 1,28 deve ser interpretado de modo novo: não
‘dominai a terra’, mas ‘libertai a terra pela comunhão com ela’. A consequência
disso para o ethos da sociedade
humana é a reorientação da vontade de
potência para a solidariedade, de luta pela existência para a paz na
existência e de busca da felicidade para a comunidade.
O elemento mais importante para o posterior
desenvolvimento da civilização é a justiça social, não o crescimento do poder
econômico. A justiça social não pode ser alcançada sem justiça para o ambiente
natural e vice-versa. Solidariedade e comunidade são os valores que tornam
suportáveis o sofrimento inevitável e a renúncia necessária. A justiça é a
forma da interdependência autêntica entre ser humano e natureza e entre
sociedade e ambiente. Seu pressuposto é o reconhecimento da independência e da
subjetividade do outro sistema de vida. O projeto de uma teoria escatológica da
criação com auxílio da teoria de sistemas abertos e sua comunicação deve servir
a essa tarefa, sem cuja realização o ser humano e a natureza não têm chance de
sobrevivência.
Resumo de: MOLTMANN, Jürgen. Criação como sistema
aberto. In: ______. Ciência e sabedoria.
São Paulo: Loyola, 2007. p. 51-75, como atividade de PIBIC, bolsa da FAPEMIG,
realizado por Gonzalo Benavides Mesones.
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