quinta-feira, 19 de março de 2015

O tempo e o kairós

Jürgen Moltmann, no capítulo VI de seu livro Ciência e Sabedoria, reflete acerca da essência do tempo e de sua experiência, apresentando e comparando os diferentes conceitos de tempo que se aplicam nas ciências naturais, na história e na teologia.
O autor parte do conceito de tempo irreversível porque é aplicável tanto aos processos naturais e históricos quanto às experiências religiosas do judaísmo, cristianismo e islamismo. Essas três religiões têm como elemento primordial a experiência de Deus por parte de Abraão e Sara. Essa experiência de Deus está ligada às experiências do Êxodo e do exílio, porque se orienta pela promessa e pela esperança de um novo futuro. Essa experiência separa os tempos num passado irrecuperável e num futuro ainda não alcançado.
“Natureza” e “história” são dois aspectos da mesma realidade, em que os homens existem e da qual fazem parte. Daí que possa se transferir o conceito histórico de tempo irreversível para alguns processos naturais. O tempo histórico se refere ao sujeito da experiência, que é historicamente mutável e, portanto, empírico. Daí se constata uma diferença fundamental entre a experiência do tempo e a do espaço: podemos estar no mesmo lugar em diferentes tempos, mas não no mesmo tempo em diferentes lugares.
No tempo histórico podemos distinguir modos temporais: um antes (passado) e um depois (futuro) diferenciados pelo presente, que tanto distingue como une os modos temporais; ele é fim do passado e começo do futuro. Nessa perspectiva, também podemos ver no presente uma categoria da eternidade, pois o presente produz a unidade e a diferença dos tempos. Daí se segue o princípio teológico: em relação à eternidade só há um tempo: presente. Ele é o conceito temporal da eternidade. Apenas o presente pode ser experienciado como existência imediata. Mas não temos nenhuma consciência desse presente, pois todo conhecer precisa de distância do conhecido. Assim, o presente é o mistério interno dos tempos.
Se colocamos os três modos do tempo num parâmetro não-direcionado, os movimentos a ser medidos com ele são reversíveis e simétricos. Em sistemas complexos, o tempo reversível assegura a estabilidade, porque é a forma de desenvolvimento dos processos cíclicos. O tempo reversível é um tempo atemporal.
Graças ao conceito de Entropia introduziu-se na física a noção de tempo irreversível e se deu o primeiro passo para a percepção física da temporalidade do tempo mesmo. Então, deve-se contar com ambas as formas temporais, a reversível e a irreversível, e falar de um “paradoxo do tempo”? Se a natureza como um todo está em processo histórico, então se soluciona o paradoxo em favor da noção do tempo irreversível.
Na experiência histórica do tempo, os modos temporais são subsumidos às modalidades do ser. Passado – presente – futuro correspondem ao ser necessário – ser real – ser futuro. O futuro é o âmbito do possível; o passado, o âmbito do real. E o presente, a linha de frente, na qual o possível se realiza ou não. Isso gera a “flecha do tempo” irreversível. O futuro pode se tornar passado, mas o passado não volta a ser futuro.
Possibilidade e realidade são modos de ser qualitativamente diferentes. O passado lembrado é diferente do futuro esperado. Se toda realidade na história é possibilidade realizada, então a possibilidade é ontologicamente superior à realidade. Por conseguinte, o futuro deve ter prioridade entre os modos temporais. Se perguntamos pela fonte do tempo, ela deve estar no futuro. Mas se deve distinguir entre o futuro como modo temporal (que passa) do futuro como fonte dos tempos. O futuro transcendental do tempo está presente para cada tempo: o futuro, o presente e o passado.
Com a introdução do sujeito na experiência do tempo surgem os fenômenos especiais do tempo histórico: não há tempo histórico sem o sujeito que a experiencia. Em sua teoria do tempo psicológico, Agostinho relaciona passado, presente e futuro à percepção deles pela alma humana: pela recordação (memoria), o espírito humano presentifica o passado. Esse é o passado presentificado, não o passado mesmo. Pela expectativa (expectatio), ele presentifica o futuro. Esse é o futuro presentificado, não o futuro mesmo. Pela intuição (contuitus), o espírito humano percebe o presente. Esse é o presente imediato. No espírito humano, o passado e o futuro estão presentes graças à lembrança e à expectativa, eles são co-presentes. Dessa associação surge no espírito humano uma simultaneidade do não-simultâneo. Essa simultaneidade é uma eternidade relativa, pois um dos atributos temporais da eternidade é sua simultaneidade. A presença do espírito do homem pode ser entendida como cópia da presença temporal absoluta da eternidade de Deus. Se pela recordação chamamos o passado, que não é mais, de volta à memória presente, e se antecipamos, pelas expectativas, o futuro, que ainda não é, então isso é uma ação criativa por parte do espírito humano sobre o ausente e que não é. Portanto, um reflexo de Deus, que chama o que não é à existência.
Há diferenças entre a história experienciada e a própria história. No passado lembrado, existe a diferença entre o presente passado e o passado presentificado. Nas expectativas presentificamos o futuro. Nós o presentificamos não como futuro, mas como presente futuro e experiência futura possível.
O entrelaçamento dos tempos no tempo histórico vai mais longe. Todo presente passado teve, assim como foi experienciado pelas gerações passadas, suas próprias lembranças e expectativas e também, portanto, seu próprio entrelaçamento de passado e futuro presentificados. Quando recordamos um presente passado, devemos perguntar também por suas lembranças e expectativas. Na própria orientação para o futuro, buscamos as esperanças do passado e as encontramos nas esperanças irrealizadas e nas dívidas não pagas das gerações passadas. Nesse sentido, o futuro da história determina os tempos e torna o passado futuro passado, o presente futuro presente, e os tempos futuros se tornaram futuro futuro.
A experiência da eternidade no tempo não é nada mais que a dimensão profunda do presente, porque o presente espiritual, graças à lembrança e à expectativa, produz uma relativa simultaneidade de passado e futuro. Essa presença da eternidade no momento histórico não é a eternidade do Deus “totalmente distinto”, mas a eternidade análoga, relativa, participativa de sua imagem na terra.
Não é apenas a simultaneidade de passado e futuro no presente histórico que constitui o conceito temporal de eternidade, mas também a experiência dessa simultaneidade. Essa é a experiência do presente como kairos, não como chronos. Kairos é o “tempo certo, oportuno”. Na compreensão kairológica do tempo “cada coisa” tem “seu tempo”. A compreensão kairológica do tempo é acentuada na experiência extática ou mística do presente como “momento cumprido”. Ela interrompe o fluxo temporal histórico de futuro e passado, nela desaparecem as lembranças e expectativas. Estamos totalmente “aí” e nos esquecemos de nós mesmos e de nossa temporalidade. A experiência do “tempo cumprido” na totalidade da vida vivida é a experiência da eternidade presentificada. Dessas experiências de eternidade presentificada nasce o anseio pelo presente eterno.
Então, existe um ponto pelo qual nos conscientizaríamos da temporalidade da vida e do mundo? Segundo a concepção clássica, esse ponto é a morte do sujeito, porque ela é a saída do tempo da vida e do tempo do mundo. Desde o começo da modernidade, a morte é vista como saída do tempo para o nada eterno. A saída para o nada nos revela a efemeridade como consequência do pecado, do isolar-se de Deus e de seu Espírito eterno e vivificante. Mas, se a saída do tempo é experienciada no momento cumprido da eternidade presente, a experiência da vida temporal é diferente. A vida eterna começa já aqui e agora no meio do tempo efêmero. Por causa dessa experiência extática do presente, a morte é esperada como começo da transformação em vida eterna, que se consumará com a ressurreição dos mortos. À luz dessa expectativa da ressurreição, o tempo é essencialmente determinado como futuridade e esperado, experienciado e lembrado como história do futuro.

Resumo de: MOLTMANN, Jürgen.. In: ______. Ciência e sabedoria. São Paulo: Loyola, 2007. cap. 6, p. 115-130, como atividade de PIBIC, bolsa da FAPEMIG, realizado por Gonzalo Benavides Mesones, estudante de Teologia da FAJE. Orientador: Afonso Murad. Projeto: Ecoteologia