Cap 1: UM SONHO SOCIAL
8. O nosso é o sonho duma Amazónia
que integre e promova todos os seus habitantes, para poderem consolidar o «bem
viver». Mas impõe-se um grito profético e um árduo empenho em prol dos mais
pobres. Pois, apesar do desastre ecológico que a Amazónia está a enfrentar,
deve-se notar que «uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma
abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio
ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres».[1] Não serve um conservacionismo «que se
preocupa com o bioma, porém ignora os povos amazónicos».[2]
Injustiça e crime
9. Os interesses colonizadores que,
legal e ilegalmente, fizeram – e fazem – aumentar o corte de madeira e a
indústria minerária e que foram expulsando e encurralando os povos indígenas,
ribeirinhos e afrodescendentes, provocam um clamor que brada ao céu:
«São muitas as
árvores
onde morou a tortura
e vastas as florestas
compradas entre mil mortes».[3]
onde morou a tortura
e vastas as florestas
compradas entre mil mortes».[3]
«Os madeireiros têm
parlamentares
e nossa Amazónia não tem quem a defenda (…)
Mandam em exílio os papagaios e os macacos (…)
Já não será igual a colheita da castanha».[4]
e nossa Amazónia não tem quem a defenda (…)
Mandam em exílio os papagaios e os macacos (…)
Já não será igual a colheita da castanha».[4]
10. Isto favoreceu os movimentos
migratórios mais recentes dos indígenas para as periferias das cidades. Aqui
não encontram uma real libertação dos seus dramas, mas as piores formas de
escravidão, sujeição e miséria. Nestas cidades caraterizadas por uma grande
desigualdade, onde hoje habita a maior parte da população da Amazónia, crescem
também a xenofobia, a exploração sexual e o tráfico de pessoas. Por isso o
clamor da Amazónia não brota apenas do coração das florestas, mas também do
interior das suas cidades.
11. Não é necessário repetir aqui as
análises tão abrangentes e completas que foram apresentadas antes e durante o
Sínodo. Mas lembremos ao menos uma das vozes ouvidas: «Estamos sendo afetados
pelos madeireiros, criadores de gado e outros terceiros. Ameaçados por agentes
económicos que implementam um modelo alheio em nossos territórios. As empresas
madeireiras entram no território para explorar a floresta, nós cuidamos da
floresta para nossos filhos, dispomos de carne, pesca, remédios vegetais,
árvores frutíferas (…). A construção de hidroelétricas e o projeto de hidrovias
têm impacto sobre o rio e sobre os territórios (…). Somos uma região de
territórios roubados».[5]
12. Já o meu antecessor, Bento XVI,
denunciava «a devastação ambiental da Amazónia e as ameaças à dignidade humana
das suas populações».[6] Desejo acrescentar que muitos dramas tiveram a ver com
uma falsa «mística amazónica»: é sabido que, desde os últimos decénios do
século passado, a Amazónia tem sido apresentada como um enorme vazio que deve
ser preenchido, como uma riqueza em estado bruto que se deve aprimorar, como
uma vastidão selvagem que precisa de ser domada. E, tudo isto, numa perspetiva
que não reconhece os direitos dos povos nativos ou simplesmente os ignora como
se não existissem e como se as terras onde habitam não lhes pertencessem. Nos
próprios programas educacionais de crianças e jovens, os indígenas apareciam
como intrusos ou usurpadores. As suas vidas e preocupações, a sua maneira de
lutar e sobreviver não interessavam, considerando-os mais como um obstáculo de
que nos temos de livrar do que como seres humanos com a mesma dignidade que
qualquer outro e com direitos adquiridos.
13. Para aumentar esta confusão,
contribuíram alguns slogans, nomeadamente o de «não entregar»,[7] como se a citada sujeição fosse provocada apenas
por países estrangeiros, quando os próprios poderes locais, com a desculpa do
progresso, fizeram parte de alianças com o objetivo de devastar, de maneira
impune e indiscriminada, a floresta com as formas de vida que abriga. Os povos
nativos viram muitas vezes, impotentes, a destruição do ambiente natural que
lhes permitia alimentar-se, curar-se, sobreviver e conservar um estilo de vida
e uma cultura que lhes dava identidade e sentido. A disparidade de poder é
enorme, os fracos não têm recursos para se defender, enquanto o vencedor
continua a levar tudo, «os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos
tornam-se cada vez mais ricos».[8]
14. Às operações económicas,
nacionais ou internacionais, que danificam a Amazónia e não respeitam o direito
dos povos nativos ao território e sua demarcação, à autodeterminação e ao
consentimento prévio, há que rotulá-las com o nome devido: injustiça e crime. Quando algumas empresas sedentas de
lucro fácil se apropriam dos terrenos, chegando a privatizar a própria água
potável, ou quando as autoridades deixam mão livre a madeireiros, a projetos
minerários ou petrolíferos e outras atividades que devastam as florestas e
contaminam o ambiente, transformam-se indevidamente as relações económicas e
tornam-se um instrumento que mata. É usual lançar mão de recursos desprovidos
de qualquer ética, como penalizar os protestos e mesmo tirar a vida aos
indígenas que se oponham aos projetos, provocar intencionalmente incêndios
florestais, ou subornar políticos e os próprios nativos. A acompanhar tudo
isto, temos graves violações dos direitos humanos e novas escravidões que
atingem especialmente as mulheres, a praga do narcotráfico que procura submeter
os indígenas, ou o tráfico de pessoas que se aproveita daqueles que foram
expulsos de seu contexto cultural. Não podemos permitir que a globalização se
transforme num «novo tipo de colonialismo».[9]
Indignar-se e pedir perdão
15. É preciso indignar-se,[10] como se indignou Moisés (cf. Ex 11, 8), como Se indignava Jesus (cf. Mc 3, 5), como Se indigna Deus perante a injustiça
(cf. Am 2, 4-8; 5, 7-12; Sal 106/105, 40). Não é salutar habituarmo-nos ao
mal; faz-nos mal permitir que nos anestesiem a consciência social, enquanto «um
rasto de delapidação, inclusive de morte, por toda a nossa região, (…) coloca
em perigo a vida de milhões de pessoas, em especial do habitat dos camponeses e
indígenas».[11] Os casos de injustiça e crueldade
verificados na Amazónia, ainda durante o século passado, deveriam gerar uma
profunda repulsa e ao mesmo tempo tornar-nos mais sensíveis para também
reconhecer formas atuais de exploração humana, violência e morte. Por exemplo,
a propósito do passado vergonhoso, recolhamos uma narração dos sofrimentos dos
indígenas da época da borracha na Amazónia venezuelana: «Os nativos não
recebiam dinheiro, mas apenas mercadorias, e caras, que nunca acabavam de
pagar. (...) Pagava, mas diziam ao indígena: “Ainda estás a dever tanto” e o
indígena tinha que voltar a trabalhar (...). Mais de vinte aldeias ye’kuana
foram completamente arrasadas. As mulheres ye’kuana foram violadas e seus seios
cortados; as grávidas desventradas. Aos homens, cortavam-lhes os dedos das mãos
ou os pulsos, para não poderem navegar (...), juntamente com outras cenas do
sadismo mais absurdo».[12]
16. Esta história de sofrimento e
desprezo não se cura facilmente. E a colonização não para; embora em muitos
lugares se transforme, disfarce e dissimule,[13] todavia
não perde a sua prepotência contra a vida dos pobres e a fragilidade do meio
ambiente. Os bispos da Amazónia brasileira recordaram que «a história da
Amazónia revela que foi sempre uma minoria que lucrava à custa da pobreza da
maioria e da depredação sem escrúpulos das riquezas naturais da região, dádiva
divina para os povos que aqui vivem há milénios e os migrantes que chegaram ao
longo dos séculos passados».[14]
17. Ao mesmo tempo que nos deixamos
tomar por uma sã indignação, lembremo-nos de que sempre é possível superar as
diferentes mentalidades de colonização para construir redes de solidariedade e
desenvolvimento: «o desafio é assegurar uma globalização na solidariedade, uma
globalização sem marginalização».[15] Podem-se
encontrar alternativas de pecuária e agricultura sustentáveis, de energias que
não poluem, de fontes dignas de trabalho que não impliquem a destruição do meio
ambiente e das culturas. Simultaneamente é preciso garantir, para os indígenas
e os mais pobres, uma educação adequada que desenvolva as suas capacidades e
empoderamento. É precisamente nestes objetivos que se mede a verdadeira
solércia e a genuína capacidade dos políticos. Não servirá para devolver aos
mortos a vida que lhes foi negada, nem para compensar os sobreviventes daqueles
massacres, mas ao menos para hoje sermos todos realmente humanos.
18. Anima-nos recordar que, no meio
dos graves excessos da colonização da Amazónia, cheia de «contradições e
lacerações»,[16] muitos missionários chegaram lá com o
Evangelho, deixando os seus países e aceitando uma vida austera e desafiadora
junto dos mais desprotegidos. Sabemos que nem todos foram exemplares, mas o
trabalho de quantos se mantiveram fiéis ao Evangelho também inspirou «uma legislação,
como as Leis das Índias, que protegiam a dignidade dos indígenas contra as
violações de seus povos e territórios».[17] E dado
que frequentemente eram os sacerdotes que protegiam os indígenas de ladrões e
abusadores, aqueles «pediam-nos insistentemente – contam os missionários – que
não os abandonássemos e faziam-nos prometer que voltaríamos novamente».[18]
19. E, nos dias de hoje, a Igreja não
pode estar menos comprometida, chamada como está a ouvir os clamores dos povos
amazónicos, «para poder exercer com transparência o seu papel profético».[19]
Entretanto como não podemos negar que o joio se misturou com o trigo, pois os
missionários nem sempre estiveram do lado dos oprimidos, deploro-o e mais uma
vez «peço humildemente perdão, não só pelas ofensas da própria Igreja, mas
também pelos crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da
América»[20] e pelos crimes atrozes que se seguiram ao
longo de toda a história da Amazónia. Aos membros dos povos nativos, agradeço e
digo novamente que, «com a vossa vida, sois um grito lançado à consciência (…).
Vós sois memória viva da missão que Deus nos confiou a todos: cuidar da Casa
Comum».[21]
Sentido comunitário
20. A luta social implica capacidade
de fraternidade, um espírito de comunhão humana. Então, sem diminuir a
importância da liberdade pessoal, ressalta-se que os povos nativos da Amazónia
possuem um forte sentido comunitário. Vivem assim «o trabalho, o descanso, os
relacionamentos humanos, os ritos e as celebrações. Tudo é compartilhado, os
espaços particulares – típicos da modernidade – são mínimos. A vida é um
caminho comunitário onde as tarefas e as responsabilidades se dividem e
compartilham em função do bem comum. Não há espaço para a ideia de indivíduo
separado da comunidade ou de seu território».[22] Estas
relações humanas estão impregnadas pela natureza circundante, porque a sentem e
percebem como uma realidade que integra a sua sociedade e cultura, como um
prolongamento do seu corpo pessoal, familiar e de grupo:
«Aquele luzeiro se aproxima
revolteiam os beija-flores
mais do que a cascata troa meu coração
com esses teus lábios regarei a terra
possa o vento jogar em nós».[23]
revolteiam os beija-flores
mais do que a cascata troa meu coração
com esses teus lábios regarei a terra
possa o vento jogar em nós».[23]
21. Isto multiplica o efeito
desintegrador do desenraizamento que vivem os indígenas forçados a emigrar para
a cidade, procurando sobreviver, por vezes de forma não digna, no meio dos
costumes urbanos mais individualistas e dum ambiente hostil. Como sanar um dano
tão grave? Como reconstruir estas vidas desenraizadas? À vista desta realidade,
é preciso valorizar e acompanhar todos os esforços que fazem muitos destes
grupos para preservar os seus valores e estilo de vida e integrar-se nos
contextos novos sem os perder, antes pelo contrário oferecendo-os como uma própria
contribuição para o bem comum.
22. Cristo redimiu o ser humano
inteiro e deseja recompor em cada um a sua capacidade de se relacionar com os
outros. O Evangelho propõe a caridade divina que brota do Coração de Cristo e
gera uma busca da justiça que é inseparavelmente um canto de fraternidade e
solidariedade, um estímulo à cultura do encontro. A sabedoria do estilo de vida
dos povos nativos – mesmo com todos os limites que possa ter – estimula-nos a
aprofundar tal anseio. Por esta razão, os bispos do Equador solicitaram «um
novo sistema social e cultural que privilegie as relações fraternas, num quadro
de reconhecimento e valorização das diferentes culturas e dos ecossistemas,
capaz de se opor a todas as formas de discriminação e domínio entre os seres
humanos».[24]
Instituições degradadas
23. Na Encíclica Laudato si’, lembramos que, «se tudo está relacionado,
também o estado de saúde das instituições duma sociedade tem consequências no
ambiente e na qualidade de vida humana (…). Dentro de cada um dos níveis
sociais e entre eles, desenvolvem-se as instituições que regulam as relações
humanas. Tudo o que as danifica comporta efeitos nocivos, como a perda da
liberdade, a injustiça e a violência. Vários países são governados por um
sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo».[25]
24. Como estão as instituições da
sociedade civil na Amazónia? O Instrumentum laboris do
Sínodo, que reúne muitas contribuições de pessoas e grupos da Amazónia,
refere-se a «uma cultura que envenena o Estado e suas instituições, permeando
todos os estratos sociais, inclusive as comunidades indígenas. Trata-se de um
verdadeiro flagelo moral; como resultado, perde-se a confiança nas instituições
e em seus representantes, o que desacredita totalmente a política e as
organizações sociais. Os povos amazónicos não são alheios à corrupção e
tornam-se suas principais vítimas».[26]
25. Não podemos excluir que membros
da Igreja tenham feito parte das redes de corrupção, por vezes chegando ao
ponto de aceitar manter silêncio em troca de ajudas económicas para as obras eclesiais.
Por isso mesmo, chegaram ao Sínodo propostas que convidavam a «prestar uma
atenção especial à procedência de doações ou outro tipo de benefícios, assim
como aos investimentos realizados pelas instituições eclesiásticas ou pelos
cristãos».[27]
Diálogo social
26. A Amazónia deveria ser também um
local de diálogo social, especialmente entre os diferentes povos nativos, para
encontrar formas de comunhão e luta conjunta. Os demais, somos chamados a
participar como «convidados», procurando com o máximo respeito encontrar vias
de encontro que enriqueçam a Amazónia. Mas, se queremos dialogar, devemos
começar pelos últimos. Estes não são apenas um interlocutor que é preciso
convencer, nem mais um que está sentado a uma mesa de iguais. Mas são os principais
interlocutores, dos quais primeiro devemos aprender, a quem temos de escutar
por um dever de justiça e a quem devemos pedir autorização para poder
apresentar as nossas propostas. A sua palavra, as suas esperanças, os seus
receios deveriam ser a voz mais forte em qualquer mesa de diálogo sobre a
Amazónia. E a grande questão é: Como imaginam eles o «bem viver» para si e seus
descendentes?
27. O diálogo não se deve limitar a
privilegiar a opção preferencial pela defesa dos pobres, marginalizados e
excluídos, mas há de também respeitá-los como protagonistas. Trata-se de
reconhecer o outro e apreciá-lo «como outro», com a sua sensibilidade, as suas
opções mais íntimas, o seu modo de viver e trabalhar. Caso contrário, o
resultado será, como sempre, «um projeto de poucos para poucos»,[28] quando não «um consenso de escritório ou
uma paz efémera para uma minoria feliz».[29] Se tal
acontecer, «é necessária uma voz profética»[30] e, como cristãos, somos
chamados a fazê-la ouvir.
Daqui nasce o sonho sucessivo...