Segundo as
tradições bíblicas, o temor do Senhor é o início da sabedoria. Segundo os
filósofos gregos antigos a raiz do conhecimento é o espanto, (*a admiração, a
surpresa). Há duas janelas diferentes para a realidade? As ciências naturais e
as ciências humanas se tornaram culturas muitos diferentes? Ou o espanto com a
natureza pode nos levar ao temor de Deus e o temor de Deus ao espanto com a
natureza?
Numa
epistemologia geral pode-se ver como o conhecimento do igual e do análogo
conduz ao reconhecimento do já conhecido e à confirmação. Mas como conhecemos
algo novo? A raiz do conhecimento está no espanto quando nos deparamos com algo
imprevisto e inesperado e nossos sentidos se abrem à recepção direta das
impressões. Se nos abrimos à impressão do novo, surgem novas formas do
apreender, de modo que podemos conservar e recordar a impressão do novo e
trabalhar sobre nossas novas impressões que correspondem a ele em nós. No
espanto, percebemos as coisas pela primeira vez e somente na segunda vez se
formam lembranças por meio das quais as impressões podem ser compreendidas. O
espanto da primeira vez perde-se no acostumado.
Cada nova
“descoberta” das ciências naturais desperta o espanto da primeira vez. Depois,
tais experimentos são repetidos experimentalmente e assimilados como ampliação
do conhecimento. Mas desde o início da era moderna essas descobertas são feitas
ativamente e a pesquisa científica pergunta mais “como funciona isso e o que se
pode fazer com isso?” do que pela essência das coisas e da sabedoria de suas
formas e conexões. No entanto, toda
descoberta real está também fundamentada no lado objetivo dos fenômenos. Eles,
esperados, mas não forçados, nos surpreendem. Se olhamos para o lado passivo e
ativo do conhecimento, também encontramos a harmonia entre aquilo que se
mostrou e o que foi descoberto. Assim, descoberta e revelação são dois lados do
mesmo evento.
A razão moderna
das ciências naturais compreende “apenas o que ela mesma produz segundo seu
projeto” (Kant), mas com isso, a natureza só é cognoscível em sua reação às
ações humanas, não em sua singularidade. Então, que natureza é objeto das
ciências naturais? A razão ativa, apreendedora, pergunta como os sistemas
naturais funcionam e o que o homem pode fazer com eles tecnicamente, para seu
próprio proveito. O objetivo parece ser a construção segundo um modelo, ou a
reconstrução dos sistemas naturais. Nesse sentido, é uma imagem humana que
impomos à natureza e não a imagem que a natureza mostra de si para nós.
Hoje as
ciências naturais e as ciências biológicas são apresentadas como neutras do
ponto de vista dos valores, de modo que estes só devem ser acrescentados
posteriormente. Isso não está correto, pois orientações claras antecedem as
ciências naturais: a vontade de potência sobre a natureza e de domínio sobre a
vida e o objetivo de ampliar essa potência sem fronteiras. Por isso se trata,
nas discussões modernas sobre a pesquisa atômica e as ciências biológicas, de
duas orientações diferentes e muitas vezes contraditórias: de um lado, o
progresso no ganho do poder, de outro o éthos
da dignidade humana.
Se a pesquisa
da natureza é a investigação das memórias naturais nos sistemas da matéria e do
vivo, então investigamos a sabedoria contida em sistemas naturais, e o fazemos
para nos tornar, nós próprios, sábios. Como nos tornamos sábios? A sabedoria
deriva da relação com as experiências que temos. O que torna sábio é o
conhecimento do conhecimento. A sabedoria é uma ética do saber. Quem faz
daquilo que sabe uma consciência deve se perguntar: para que servem seus
conhecimentos? O que as experiências fizeram de sua vida? O que permanecerá
quando você morrer? Perguntamos por sabedoria no trato com o divino, o cósmico
e o humano. Mas antes devemos nos perguntar se são sabedorias diferentes ou se
é uma sabedoria que abrange e une as três dimensões.
Na teologia da
revelação, tudo se passa como se Deus se revelasse em eventos e pessoas da
história humana e então fosse reconhecido na natureza. Na teologia da
sabedoria, Deus é conhecido a partir da vida e das ordens da natureza e então
reconhecido na sabedoria de vida humana. Em vez de Deus-homem-natureza, a ordem é Deus-natureza-homem.
Segundo o
Antigo Testamento, o homem ganha a sabedoria divina no “temor do Senhor”. Isso
se refere à sublimidade de Deus, que desperta reverência e humildade quando é
percebida pelo ser humano. Temor e amor descrevem os dois lados da presença de
Deus: distância e proximidade, sublimidade e intimidade, transcendência e
imanência. Que conhecimento nasce do temor e do amor a Deus? Primeiro, uma
reflexão sobre o próprio homem. Ante a sublimidade de Deus, o ser humano se
conscientiza de sua nulidade e desaparece toda autodivinização. Mas no amor de
Deus, toma consciência de seu significado para Deus e desaparece assim todo
autodesprezo.
Em Provérbios 8
se afirma a preexistência da sabedoria divina. O livro da Sabedoria diz que as
atividades da sabedoria são vistas no formar, moldar e ordenar a obra da
criação. Deus não somente chama o mundo à existência, mas configura todas as
coisas de tal forma que elas se tornam reflexo de sua glória. Ele é o mistério
divino da criação, que se exprime em todas as criaturas e em suas
inter-relações, mas também as supera.
A sabedoria
cósmica fala aos homens. Isso pressupõe a crença de que a criação é, por
princípio, cognoscível para as criaturas humanas. Pode-se imaginar isso como
uma imanência gradual do criador do mundo: (1) Em suas obras de criação por sua
sabedoria, (2) Em suas obras de
santificação por seu Espírito, (3) Na
redenção, por sua glória. A dimensão
divina da sabedoria imanente no cosmos mantém essa sabedoria longe do
conhecimento humano, por mais que seja conhecida. Essa é a dimensão
transcendental da sabedoria imanente. Isso nos torna humildes em nosso
conhecimento do mundo. Se o conhecimento científico leva em conta essa dimensão
transcendental, o interesse que o guia não estará apenas no domínio e na
apropriação da natureza conhecida, mas também na atenção a ela.
Na sabedoria
humana, trata-se da diferenciação de bom e mau, conservação e aniquilação, vida
e morte. Acrescenta-se ao éthos
científico o éthos no trato com os
conhecimentos científicos. Na responsabilidade do cientista, entra sua responsabilidade
como cidadão na sociedade e como portador de sua cultura. Sábio é fazer dos
conhecimentos científicos apenas o que serve à vida, e resistir e renunciar ao
que espalha aniquilação e morte.
Até onde vai a
responsabilidade dos cientistas pelas pesquisas ou também por aquilo que eles
mesmos ou outros fazem com seus resultados? Essa foi, no último século, a pergunta
pela guerra e pela paz. Em circunstâncias normais, a responsabilidade
científica estende-se até aos métodos de pesquisa. Mas a responsabilidade pela
direção da pesquisa ultrapassa o indivíduo. Contudo, na transição para a
economia bélica, os cientistas individuais também se põem diante da pergunta
ética: devem colaborar com os meios de destruição em massa ou se recusar a
isso? O cientista é também cidadão e partícipe da responsabilidade política.
A “utilização
pacífica” e simultânea da energia nuclear começou com a promessa de uma “fonte
de energia inesgotável”. Infelizmente, os envolvidos caíram na armadilha do
“aprendiz de feiticeiro”: as pessoas conheciam as fórmulas para o emprego
industrial da energia atômica, mas não as fórmulas para a eliminação do lixo
atômico radiativo. Esse conhecimento deveria tornar os cientistas, os políticos
e o público cautelosos quando os biotécnicos pedirem dinheiro de pesquisa com
promessas salvíficas semelhantes. Erros na tecnologia genética como na energia
atômica têm consequências para várias gerações no futuro.
A “primeira
fórmula do poder” está hoje nas mãos dos cientistas; a “segunda fórmula do
poder” seria a fórmula da liberdade ética sobre o poder físico e está nas mãos
da sabedoria. Não é preciso fazer tudo que se pode fazer. Essa é a hora da
sabedoria e da superação da crença no progresso. Precisamos de outra época para
a integração da civilização humana ao sistema de vida desta terra, porque
também somos uma parte da natureza e não seus senhores, semelhantes a deuses.
O temor de Deus
gera a sabedoria ética com que o homem conhece e reconhece seus limites e, com
isso, adquire poder sobre seu poder científico e técnico. Depois de um aumento
tão extraordinário de saber precisamos no futuro próximo de um aumento ainda
maior de sabedoria e de relação sábia com esse saber.
Resumo de:
MOLTMANN, Jürgen. Ciência e Sabedoria. In: ______. Ciência e sabedoria. São Paulo: Loyola, 2007. cap. 10, p. 187-206, como
atividade de Iniciação Científica, bolsa da FAPEMIG, realizado por Gonzalo
Benavides Mesones, estudante de Teologia da FAJE, Faculdade Jesuíta, sob
orientação do prof. Afonso Murad.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Coloque aqui seu comentário