quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Edgar Morin: Laudato Si aponta para uma nova civilização

Entrevista a Edgar Morin, com A. Peillon e I. Gaulmyn, publicada por La Croix e reproduzida por Avvenire, 10/09/2015. Tradução de IHU On-Line.

Você definiu como providencial a encíclica Laudato Si'. O que entende por isso?
Estamos numa era do pensamento fragmentado onde os assim denominados partidos ambientalistas não compreendem a amplidão e a complexidade do problema, perdendo de vista a pertinência daquilo que o Papa Francisco chama "a casa comum", uma expressão já empregada por Gorbachov. Sempre fui movido por esta mesma exigência de um olhar complexo, global, ou seja, da necessidade de tratar as relações entre as diferentes partes. No 'deserto' atual, portanto, aparece este texto que me parece bem pensado e que responde à esta complexidade.
Francisco define "a ecologia integral", que não é, de fato, aquela ecologia 'profunda' que pretende nos converter ao culto da Terra, subordinando todo o resto. Ele mostra que a ecologia diz respeito às nossas vidas em profundidade, à nossa civilização, aos nossos modos de agir, às nossas reflexões. Mais profundamente, critica um paradigma "tecno-econômico", este modo de pensar que preside todos os nossos discursos, tornando-os obrigatoriamente fieis aos postulados técnicos e econômicos para resolver qualquer problema. Este texto assinala uma tomada de consciência, um incitamento a repensar a nossa sociedade e o nosso agir. É, portanto, providencial,  no sentido que é um texto imprevisto que indica o caminho.

O texto tem uma prospectiva humanística da ecologia?
Sim, já que usando a noção de ecologia integral, convida a tomar em consideração todas as lições desta crise ecológica. Mas, primeiramente, precisemos a noção de humanismo, que tem um sentido duplo, como Francisco, por sua vez, afirma no seu discurso, criticando uma determinada forma de antropocentrismo. Existe um humanismo antropocentrista, que coloca o homem como centro do universo, que considera o homem como o único sujeito do universo. Enfim, onde o homem toma o lugar de Deus. Não sou crente, mas penso que este papel divino que o homem se atribui é absolutamente insensato. E uma vez que assumimos este princípio antropocentrista, a missão do homem, muito claramente formulada por Descartes, é de conquistar e dominar a natureza. O mundo da natureza tornou-se um mundo de objetos. O verdadeiro humanismo consiste, ao contrário, em reconhecer em cada ser vivente um  ser semelhante e diferente de mim.

Você compartilha a invocação de Francisco de Assis, retomada pelo Papa, que fala do irmão Sol, que implica numa forma de fraternidade com aquilo que os cristãos denominam de o Criado?
O Papa teve a sorte de encontrar, no cristianismo, São Francisco de Assis. Sabemos hoje que possuímos células que se multiplicaram desde a origem da vida e de que somos compostos, como qualquer ser vivente. Se percorremos a história do Universo, nos damos conta que carregamos conosco todo o cosmos e de uma maneira singular.
Existe uma solidariedade profunda na natureza, ainda que sejamos diferentes, por causa da consciência, da cultura. Mas mesmo sendo diferentes, todos somos filhos do Sol. O verdadeiro problema não consiste em nos reduzirmos ao estado da natureza, mas de não nos separarmos do estado natural.
O Santo Padre pode encontrar na Bíblia um certo número de pontos que justificam esta compreensão. Pessoalmente, acredito que a Bíblia narra uma criação do homem totalmente separada daquela dos animais e que começou a suscitar este pensamento antropocentrista. A mensagem de Paulo prolonga esta compreensão, separando o destino humano depois da morte dos outros seres vivos. Parece-me que esta concepção separa a civilização judaico-cristã das outras grandes civilizações.

Mas a propósito, na encíclica Laudato Si', o Papa dá uma interpretação oposta do Gênesis...
É verdade, podem ser formuladas interpretações cosmogônicas do Gênesis, sobretudo porque Elohim, o termo do Gênesis que denomina Deus, é um plural singular ao mesmo tempo uno e múltiplo. Aí podemos ver uma espécie de turbina criadora. Também é verdade que no Gênesis se lê que no princípio Elohim separou o céu e a terra. Trata-se de uma ideia interessante, já que para se ter um universo é preciso uma separação, entre os tempos (passado, presente, futuro) e o espaço (aqui e ali). Mas tenho pessoalmente uma concepção que herdei de Spinoza, baseada na capacidade criadora da natureza. Creio que a criatividade não nasça de um criador inicial, mas de um evento inicial.

Você conhece bem a América do Sul. A reflexão de Francisco está muito ligada à cultura argentina?
Sim, concordo. O que sempre me impressionou é perceber na América Latina uma vitalidade, uma capacidade de iniciativa que nós não temos. Por exemplo, encontro na encíclica este sentido da pobreza tão forte neste continente. Na Europa, esquecemos totalmente os pobres, marginalizando-os. Mas na encíclica, o conceito de pobreza é vivo, como nas manifestações do Movimento dos Agricultores sem Terra, no Brasil.
E seguramente a Argentina, que conheceu tantas provas, que teve que cancelar a própria dívida declarando a bancarrota, é um País com uma vitalidade democrática extraordinária. Não acho que é um milagre, mas era preciso que um Papa viesse de lá, com esta experiência humana. É um Papa encharcado da cultura andina que opõe ao 'bem-estar' exclusivamente materialístico europeu o estar bem (o buen vivir) que representa uma plenitude pessoal e comunitária autêntica. A mensagem pontifícia é um convite à mudança, à uma nova civilização e eu acho isto muito tocante. Esta mensagem é, talvez, o primeiro artigo de um apelo para uma nova civilização.

Para além desta encíclica, como você percebe a contribuição das religiões para a nossa sociedade?
Todos os esforços para erradicar as religiões faliram completamente. As religiões são realidades antropológicas. O cristianismo conheceu uma contradição entre alguns dos seus desenvolvimentos históricos e a sua mensagem inicial, evangélica, que é o amor dos homens. Mas quando a Igreja perdeu o seu monopólio político, uma parte reencontrou a sua fonte evangélica.
A última encíclica é integralmente um retorno às origens evangélicas. Os cristãos, quando são animados pela fonte da sua fé, são tipicamente pessoas de boa vontade, que pensam no bem comum. A fé pode ser uma armadura contra a corrupção dos políticos e administradores.
A fé pode dar coragem. Se numa era virulenta como a nossa, as religiões voltarão à sua mensagem inicial, particularmente o Islã, já que Alá é o Clemente e o Misericordioso, elas poderão se compreender. Hoje, para salvar o nosso planeta verdadeiramente ameaçado, a contribuição das religiões não é supérfluo. Esta encíclica é uma demonstração evidente disto.

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