terça-feira, 10 de setembro de 2013

Transporte individual e mobilidade urbana

Entrevista a André Trigueiro (jornalista ambiental) no Portal IHU On-line

Algumas pessoas alegam que preferem se locomover de carro porque o transporte público é ineficiente. Será só isso mesmo, ou no Brasil o uso do carro já faz parte da cultura brasileira?
Trigueiro – No Rio de Janeiro há um volume de investimento muito expressivo para preparar a cidade tanto para a Copa do Mundo em 2014 quanto para as Olimpíadas de 2016. O Rio de Janeiro tem uma oportunidade ímpar de promover, como nunca fez, o transporte público de massa. Há uma pressão enorme, o nível de consciência da população é muito grande, ou muito maior do que já foi. A tendência é que esse nível de pressão e de consciência cresça e que os tomadores de decisão percebam, como já percebem, que não há alternativa: não se consegue governar uma cidade colapsada na capacidade de promover o deslocamento das pessoas, as cidades são dinâmicas por vício de origem, as cidades são grandes formigueiros. Então, têm que ter fluxos de movimentação livres.
Estudos mostram que o deslocamento do centro da cidade do Rio de Janeiro até um determinado ponto da periferia demorava 20 minutos há 10 anos e, agora, demora 45 minutos. Nos próximos 10 anos, faremos esse percurso em quanto tempo? Há um problema de gerenciamento, pois os mandatos de prefeitos e governadores são de quatro anos e as mudanças feitas não resolvem o problema.
Respondendo objetivamente à pergunta, tem um pouco de tudo e cada região do Brasil tem a sua singularidade. Via de regra, existe certo comodismo, além da publicidade enganosa, que mostra o carro em comercial de televisão sempre andando sem engarrafamento. O carro também está cada vez mais confortável, oferece kits de conveniência. Não é normal perder até quatro horas da vida em engarrafamentos, todos os dias. Mas a loucura do automóvel também é a de tentar emprestar sentido à permanência no engarrafamento desde que seja em um carro Pop. Há uma inversão de valores.

 Muitas pessoas dizem que é complicado se locomover de bicicleta em função da engenharia das cidades. O que poderia mudar nesse sentido?
Trigueiro – A engenharia de tráfego das cidades tem que mudar, temos que mudar o paradigma, o modelo. Isso, em bom português, significa que os investimentos públicos em transporte de massa eficiente, barato e rápido devem ser superiores, devem suplantar os investimentos públicos que abrem caminho para o transporte individual. Um estudo feito recentemente por um pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) apontou que a maior parte dos impostos pagos pelos brasileiros é aplicada na área de transporte, mas beneficiam o transporte individual. Isso é um desajuste, um desacerto e é injusto, porque a maioria dos brasileiros não tem carro. Além disso, não se podem utilizar recursos públicos majoritariamente para abrir caminho para o transporte privado.
É preciso promover não apenas a possibilidade de a bicicleta interligar domicílio a trabalho, ou seja, criar corredores, fluxo de bicicleta, demarcar no asfalto ou na calçada o espaço da ciclovia, mas ter uma sinalização eficiente, fiscalização presente, educação ostensiva para motoristas e ciclistas e punição severa e exemplar para quem não respeita as regras. Na Europa, o motorista tem medo de “encostar” em ciclista porque sabe que é encrenca. No Brasil, o pedestre é soberano, ninguém pode encostar nele, mesmo que esteja atravessando a rua fora da faixa de segurança, ou esteja em uma situação de risco. É dever do motorista parar o carro.
É fundamental entendermos que a bicicleta pode entrar como um elemento importante que interliga modais de transporte. A pessoa pode sair de casa usando a bicicleta, parar em uma grande estação de trem, de ônibus ou de metrô, onde haja bicicletário e, de lá, seguir para outros lugares da cidade. É preciso investir em lugares referenciais, onde o fluxo de ciclistas eventualmente seja grande. Poderiam criar um banheiro público e cobrar R$1, R$1,50, R$2 pela utilização. Os ciclistas poderiam tomar banho pagando uma taxa simbólica. Seria uma forma de facilitar a vida deles.
No metrô, por exemplo, um vagão poderia ser destinado aos ciclistas. Essas seriam alternativas para reduzir a emissão de CO2, diminuir o ruído das cidades e melhorar a mobilidade urbana. A frota nacional de veículos cresceu mais de 100% em uma década, quer dizer, é um crescimento em progressão geométrica e as artérias das cidades não crescem na mesma proporção. Não existe mais hora do rush e isso significa perda de mobilidade.

 Segundo informações do Ipea, com a ascensão das classes C e D, deverá aumentar a aquisição de automóveis no país. O sonho de muitas pessoas é possuir um carro próprio. Como lidar com esse paradoxo: ascensão econômica x sustentabilidade?
Trigueiro – Em primeiro lugar, a multiplicação de carros no Brasil é uma bomba relógio ambiental de grandes proporções. O governo tem, nos impostos arrecadados, não apenas com a venda de automóveis, mas de todos os componentes, uma importantíssima fonte de arrecadação. Certa vez foi feita uma conta: se fosse possível somar todas as montadoras de veículos do mundo e toda a receita auferida pelo setor automotivo e isso fosse transformado em um número, esse número equivaleria ao sexto maior PIB do planeta, ou seja, em um ranking de países, o setor automotivo seria o sexto país mais rico do mundo.
Outro ponto importante é que não se faz omelete sem quebras os ovos. É duro ter que dizer isso. Preciso ter cuidado ao explicar isso para não ter uma visão elitista, mas o fato é que não é possível todo o brasileiro ter carro, como não é possível todo o indiano, todo o chinês ter carro. Simplesmente não dá, não é uma questão de justiça, é uma questão física. Segundo o IBGE, 83% dos brasileiros vivem em cidades. Se todos esses tiverem um carro, a vida se tornaria absolutamente insustentável, intolerável.
O estudo do Ipea indica que, possivelmente, o Brasil terá que replicar experiências que já acontecem em alguns países do mundo, que são restritivas ao automóvel. Em Cingapura, as pessoas completam 18 anos e tiram a carteira de motorista se houver disponibilidade, pois o governo estabeleceu uma cota. Eles têm um número definido de licenças de motoristas. Uma medida possível talvez seja restringir o número de carteiras de habilitação, não é qualquer um que pode ser motorista, é só quem pode, e o governo vai dizer isso em termos estritamente numéricos, pois tem um limite, uma capacidade de suporte.
Outra opção é sobretaxar o veículo, como fizemos com cigarros e bebidas. Na Califórnia, existem corredores, faixas de rolamento exclusivas para motoristas que estejam acompanhados. A maioria das pessoas, no Brasil, andam sozinhas e não poderiam pegar a faixa seletiva.
Toda sobretaxa que o governo poderá criar para o transporte individual deverá ser canalizada diretamente para o transporte público. Para onde vai o dinheiro do pedágio urbano de Londres? Para melhorias do transporte público de massa do cidadão londrino. Não tem desvio de dinheiro e isso faz a diferença. O motorista, em lugares onde a cidadania é valorizada, pode até ficar chateado por precisar ir ao centro de carro, já que está sempre pagando seu imposto.
Confesso a você que eu teria um cuidado maior na propaganda de automóveis, como se tem em relação à bebida. Quando encerra um comercial de bebida aparece a frase: “beba com moderação”. Poderíamos pensar o mesmo para a propaganda de veículos, uma mensagem que vá ao encontro do uso sustentável.
Hoje em dia ter carro é muito diferente de 20, 30 anos atrás. Por isso, a publicidade tem de lembrar, a quem queira comprar carro, que é preciso ter cuidado, uma visão mais encorpada de mundo.
Além dessas possibilidades, penso que o principal seja aderir à certificação energética, como se fosse um selo Procel, com letra A, B, C, D e E. A letra A representa o carro mais eficiente do ponto de vista do consumo do combustível. As montadoras tinham de ser obrigadas a ter prazos e metas de eficiência e, de cinco em cinco anos, os carros deveriam superar a eficiência.

Em que consistiria um sistema integrado e inteligente de transporte?
Trigueiro – Através de um bom mapeamento dos percursos, dos trajetos, corredores de deslocamentos na cidade. É preciso entender como a população está distribuída e onde há maior demanda de deslocamento. Segundo, um planejamento em resposta ao diagnóstico, ou seja, como melhorar os meios de transporte onde eles se fazem mais necessários. Penso que o ideal é priorizar, sempre, o transporte público de massa. O que é transporte público de massa? Não é ônibus, é metrô, trem, barca.
Os modais de transporte precisam aparecer em um grande mapa que esteja na sala do gestor público, para que ele visualize a deficiência em determinada área da cidade que está crescendo e precisa promover o transporte.
Fonte: Portal IHU – Setembro de 2013.

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