domingo, 31 de maio de 2009

Mudanças climáticas: leitura a partir da fé

A Bíblia não fala de aquecimento global, porque naquele tempo isso não era um problema. A ciência não estava tão desenvolvida, como hoje, o número dos habitantes e as atividades humanas não representavam uma ameaça para a sustentabilidade do planeta. Mais ainda, a Bíblia não é um prontuário de perguntas e respostas ligadas aos problemas humanos e do cosmos ipso facto, mas a narração de um conjunto de experiências de fé de muitos povos que procuram responder, de maneira criativa, aos desafios de seu tempo à luz da fé.
Além disso, não é possível separar o conjunto dos acontecimentos procurar dar respostas às mudanças climáticas, como se fossem algo isolado e nada tivesse a ver com tudo o que acontece ao nosso redor e com a incidência que a ação humana tem sobre o sistema terra. Portanto, perguntando à Bíblia não podemos interrogá-la sobre o aquecimento global como tal, mas colocar a nossa pergunta dentro do conjunto positivo dos fenômenos sociais, humanos, cósmicos e naturais que podemos definir em linguagem bíblica como procura de vida em plenitude ou shalom (Jo 10,10).

Iluminação ética e bíblica
Logo que abrimos a Bíblia nos deparamos com a criação do mundo e do ser humano. Alias a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse é uma continua criação. E a palavra, lá bem no começo, afirma a beleza e bondade da criação. Será que no início, tudo estava bem-feitinho e só depois, devido ao orgulho (hybris) que causou o pecado original, estragou-se o que tinha sido feito com esmero? Estava prontinho e tinha sido entregue aos cuidados do ser humano, como valor de uso? A nossa experiência nos diz que todo uso gera desgaste, e algo precisa ser reposto. Portanto, tudo é um criar e recriar.
Galileu dizia que a Bíblia não nos diz como vai o céu, mas como ir para o céu. Fala-se de vida harmoniosa, que tenha sentido, e dos cuidados necessários para que o tudo que nos foi entregue fosse conservado, melhorado e entregue às gerações futuras. O livro do Deuteronômio nos diz que temos à nossa frente a benção ou a maldição, a vida ou a morte, a humanidade ou a desumanidade (Dt. 30,19) e que precisamos escolher. Portanto a questão é como entender e responder, de maneira criativa, aos desafios do nosso tempo. Desafios que nunca faltaram e não faltarão, enquanto o ser humano morar neste planeta.

Sabemos, a partir da Bíblia, que Deus criou algo de bom, mas incompleto, e esta obra foi entregue nas mãos do ser humano para que não só dela cuidasse, mas também a completasse. Este era o projeto originário de Deus. O Alfa da criação devia se tornar o Omega. A Criação devia se tornar uma recriação continuada na qual, a Jerusalém Celeste não só descia do céu das mãos de Deus, mas também subia da Terra das mãos dos seres humanos. Esses, feitos à semelhança de Deus, se tornariam sua imagem, e junto com eles toda a criação. Entregue ao ser humano, a Criação devia se tornar história para que a ação humana, em parceria com o ecossistema, a recapitulasse e a completasse embora nas dores da gestação (Rm 8,22: “Até agora a criação geme com dores de parto). Através do seu trabalho, continuaria o trabalho de Deus (Jo 5,17: ”Meu Pai continua trabalhando e eu também trabalho”).
Infelizmente a realidade nos narra algo de diferente. Logo, o ser apossou-se da criação e bancou o patrão. Esqueceu do seu projeto originário e como dono que se sentia, começou a tratar a casa comum como casa particular, introduzindo a lei do meu e do teu. Em lugar do uso social dos bens, o dogma da propriedade privada. Assim, desvirtuou o plano originário de Deus e concebeu um próprio projeto a uso particular de poucos. Neste desvario, perverteu também a religião, que foi dobrada para justificar a cobiça e até as guerras, convertendo o ser humano de criatura em rei do universo.

Na história da humanidade, nunca faltaram vozes proféticas, como os profetas bíblicos, Jesus, Budda, Lao Tse, Confúcio, os místicos, São Francisco e os profetas modernos como Chico Mendes, que cantavam fora do coral. Mas como vozes isoladas eram, ou ignoradas, ou zombadas, ou brutalmente caladas. A mesma natureza levanta a sua voz para nos avisar, e às vezes, para nos instigar de maneira violenta (secas, chuvas torrenciais, furações, doenças, etc). Mas parece que o ser humano, sobretudo o ocidental, perdeu a capacidade de ouvir. Abandonou a sabedoria ancestral que o faz ouvir a voz e ver o rastro de Deus em toda a criação.
Na verdade, criamos uma grande sabedoria tecno-científica que poderia, inserida dentro do projeto originário divino, aumentar o bem-estar e ser fonte de benção. Mas infelizmente ela foi posta majoritariamente à serviço da cobiça (armas, patentes, transgênicos) e dos dogmas da religião neoliberal: produção, lucro, acúmulo e consumo, com uma continua polarização da riqueza nas mãos de poucos.
O aquecimento global se insere dentro deste quadro crepuscular, como uma das vertentes avançadas do espírito do homem sapiens/demens que esqueceu o seu projeto de cristificação e se tornou o patrão absoluto, aumentando, de maneira exponencial, a sua capacidade de desejar e atrofiando a sua capacidade de se relacionar. Este desvairio do ser humano, que já é uma ameaça concreta para muitas espécies que a cada dia estão desaparecendo, está se tornado uma ameaça à mesma espécie humana.

A Criação, que segundo a atual teoria cientifica do big-bang nasceu de uma explosão inicial e continua a se expandir ao infinito, segundo alguns, e, até certo ponto, segundo outros, até se recolher outra vez (big-crush), não tem necessidade absoluta do ser humano. Nós é que precisamos dela para poder viver. Se a humanidade desaparecer por causas naturais (meteoritos, esgotamento do sol) ou provocadas (poluição crônica, aquecimento global ou catástrofe atômica), outros seres irão sobreviver. Embora sejamos a consciência reflexa da Terra, ela não precisa necessariamente de nós.

Reverter o quadro
É possível reparar os danos provocados pela ação humana. Quem desencadeou esta perversão pode revertê-la. Como fazer isso? Tecendo uma rede de solidariedade ao redor do humano e do não humano. Revendo o nosso paradigma de desenvolvimento. Mudando a nossa maneira de pensar o ser humano, seu lugar no mundo e sua atuação. Dito em termos religiosos, precisamos de uma profunda conversão, para passar de uma relação agressiva, e de exploração para com a criação e os seres humanos, para uma relação de cuidado e de colaboração.
Podemos melhorar as relações, crescer em humanidade, superar o estágio do homem sapiens/demens e evitar muitos dos transtornos físicos, naturais e psicológicos que assolam vida atual. Devemos mudar o padrão de existência, passando de parâmetros quantitativos para os qualitativos. Como dizia E. Fromm, do ter ao ser, ou segundo critérios econômicos: do valor de troca ao valor de uso. Trata-se de também de revalorizar a vida e o morrer. Desta forma, vamos nos enxertar dentro do projeto original de Deus, como co-criadores, completando a criação e sendo participes de Cristo na recapitulação. Recebemos o mundo como herança, para administrá-lo e entregá-lo para quem virá depois.
Par resolver o desafio das mudanças climáticas exige-se tomar as medidas necessárias para reduzir a emissão dos gases de efeito estufa, como também entrar no âmbito dos valores e das estruturas sociais e econômicas que prejudicam o nosso crescimento como seres humanos. Ditos em termos religiosos, uma conversão profunda. Não somente a conversão do coração, mas também de critérios, parâmetros e paradigmas sócio-econômicos, em favor do Deus da Vida.

Texto: Adriano Zerbadri. Missionário Comboniano italiano, radicado há anos no Brasil, ele atua na pastoral popular da região Leste de São Paulo e é mestrando em Missiologia no ITESP.
Ilustração: Elda Broilo

9 comentários:

  1. Raimundo Donato -FAJE1 de junho de 2009 às 13:19

    O texto faz um releitura da criação enfocando a importancia da obra criada e a necessidade de saber cuidar dela. Como o autor do texto mesmo enfocou a Bíblia do Gênesis ao Apocalipse fala da Criação. A Bíblia é o Manual do Criador, nela encontramos as respostas mais profundas a respeito das criaturas e nela percebemos a presença dinâmica do próprio Deus. A criação é uma obra incompleta, como foi enfocado no texto, ou seja, ele requer competude, o ser humano como co-criador tem o dever ético de cuidar da obra da criação. Nós nos tornamos imagem e semelhança do Deus Criador na medida em que nos tornamos como Ele: zelosos, cuidadosos e amorosos com a criação, pois Deus é assim com suas criaturas. Por fim, para que o aquecimento global e tantas outras calamidades terminem é necessário da nossa parte uma tomada de consciência e uma mudança de mentalidade, a isso nos chamamos de conversão. A natureza grita por socorro e somente aqueles que têm um sensibilidade para perceber esse grito é capaz de entender que a natureza geme não por ela simplesmente, mas ela geme por todos nós. Que futuro estamos plantando para as novas gerações que viram. Que planeta as futuras gerações habitarão. É preciso fazer algo, ainda dá tempo!!! Mas tudo começa em nós, é a aprtir de pequenas mobilizações que o grande resultado aparece no final. A união ajuda na preservação. Unamos em torno da Ecologia, pois quem ganha somos nós mesmo!!!

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  2. Regina Reinart (ITESP)16 de junho de 2009 às 13:36

    Sim, é a iluminação ética e bíblica que vai ajudar no dialogo entre o “Aquecimento Global e Teologia”. Entendemos que a ação humana é responsável pela mudança climática. O consenso científico é de que o aquecimento global é antropogênico. O próprio ser humano sofre as conseqüências do seu comportamento ambiental. É urgente uma mudança na atitude humana em relação à criação pois o seu atual modo de viver no mundo danifica e continuamente destroi o ecossistema, assim levando a uma grave interferência no efeito estufa. A chave para uma leitura teológica consiste numa escuta-acolhida às leis naturais e ao mandamento de Deus (de cuidar da terra). Esta escuta-acolhida terá três dimensões básicas que também poderíamos chamar três pernas de espiritualidade, apoiando, como aquele antigo banquinho do meu pai que ele utilizava lá na roça para tirar leite da vaca: a espiritualidade da criação, da comunhão e da conversão. Acredito que a natureza revela a sabedoria de Deus. Nos ecossistemas nada se perde, tudo se transforma, tudo se integra. O ser humano precisa escutar-acolher este círculo de transformação para que haja equilíbrio e vida para todos os seres.

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  3. Durante muito tempo ficamos presos a mentalidade de que o centro da criação era o homem, hoje percebemos que a própria visão biblica que tinhamos era errônia. No livro da criação, o gênesis, Deus nos cria como complementadores da natureza e, é isso que devemos ser, seres que dão sentido ao ciclo natural, não exploradores sanguinários.

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  4. Erasmo Holanda - FAJE14 de junho de 2010 às 23:48

    Realmente o respeito pela criação exige uma atitude de conversão. Sempre quando escutamos a palavra conversão Associamos a ela posturas individuais que dizem respeito somente ao carater individual do ser humano que opta pela fé cristã. Neste artigo somos levados a pensar a conversão como relação de respeito, seja ela: com o nosso corpo, nossos semelhantes, os animais, os recursos naturais e enfim com todo o planeta. Por isso a conversão mais que uma atitude religiosa, por vezes intimista,deve levar o ser humano a descobrir sua vocação de cuidador da criação. Desta obra magnifica de Deus que é mundo fruto da sua bondade salvifica

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  5. Deus criou o ser humano e o ser humano por sua vez, cria “uma grande sabedoria tecno-científica que poderia, inserida dentro do projeto originário divino, aumentar o bem-estar e ser fonte de benção”. Esta sabedoria segundo o texto, “infelizmente ela foi posta majoritariamente à serviço da cobiça (armas, patentes, transgênicos) e dos dogmas da religião neoliberal: produção, lucro, acúmulo e consumo, com uma continua polarização da riqueza nas mãos de poucos”. Entendemos aqui a lógica que nos levou a um desequilíbrio com a natureza, o fato é que o ser humano usa da natureza para seu beneficio, mas não sabe como cuidar para que ela se mantenha sempre num bem estar, só extraímos e não nos preocupamos em reproduzir.
    O aquecimento global , as mudanças climáticas estão ligadas a este esquecimento e descuido como nos diz o texto esses fenômenos “se inserem dentro deste quadro crepuscular, como uma das vertentes avançadas do espírito do homem sapiens/demens que esqueceu o seu projeto de cristificação e se tornou o patrão absoluto, aumentando, de maneira exponencial, a sua capacidade de desejar e atrofiando a sua capacidade de se relacionar”.
    O ser humano por sua capacidade de pensar e agir sente-se dominador do planeta. Com isso corremos o risco de se sentir donos e fazer-mos o que bem quiser com a natureza. O ser humano deve sentir-se parte integrante do planeta, neste sentido, certamente vislumbraremos mais vida. Mais desenvolvimento e cuidado com o planeta.
    Nossa caminhada de fé de seguidores de Jesus Cristo deve apontar estas verdades para as pessoas, tornando-as conscientes desta realidade, precisamos “tecer uma rede de solidariedade ao redor do humano e do não humano. Revendo o nosso paradigma de desenvolvimento”.
    Devemos agir em busca de uma verdadeira sintonia do homem com a terra, com a natureza e com todo o universo. Sempre certos de que Deus se faz presente em tudo e em todos, ele nos guia e é fonte para nossas vidas.

    Ir. Marcio Henrique Ferreira da Costa – Gestão Pastoral – ISTA

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