Quem somos
Nós, construtores e construtoras do Fórum Alternativo
Mundial da Água (FAMA), reunidos de 17 a 22 de março de 2018, em Brasília,
declaramos para toda a sociedade o que acumulamos após muitos debates,
intercâmbios, sessões culturais e depoimentos ao longo de vários meses de
preparação e nestes últimos dias aqui reunidos. Somos mais de 7 mil
trabalhadores e trabalhadoras da cidade e do campo, das águas e das florestas,
representantes de povos originários e comunidades tradicionais, articulados em
450 organizações nacionais e internacionais de todos os continentes. Somos
movimentos populares, tradições religiosas e espiritualidades, organizações não
governamentais, universidades, pesquisadores, ambientalistas, organizados em
grupos, coletivos, redes, frentes, comitês, fóruns, institutos, articulações,
sindicatos e conselhos.
Na grandeza dos povos, trocamos experiências de
conhecimento, resistência e de luta. E estamos conscientes que a nossa produção
é para garantir a vida e sua diversidade. Estamos aqui criando unidade e força
popular para refletir e lutar juntos e juntas pela água e pela vida nas suas
variadas dimensões. O que nos faz comum na relação com a natureza é garantir a
vida. A nossa luta é a garantia da vida. É isso que nos diferencia dos projetos
e das relações do capital expressos no Fórum das Corporações – Fórum Mundial da
Água. Também estamos aqui para denunciar a 8º edição do Fórum Mundial da Água
(FMA), o Fórum das Corporações, evento organizado pelo chamado Conselho Mundial
da Água, como um espaço de captura e roubo das nossas águas.
O Fórum e o Conselho são vinculados às grandes corporações
transnacionais e buscam atender exclusivamente a seus interesses, em detrimento
dos povos e da natureza.
Nossas constatações
sobre o momento histórico
O modo de produção capitalista, historicamente, concentra e
centraliza riqueza e poder, a partir da ampliação de suas formas de acumulação,
intensificação de seus mecanismos de exploração do trabalho e aprofundamento de
seu domínio sobre a natureza, gerando a destruição dos modos de vida. Vivemos
em um período de crise do capitalismo e de seu modelo político representado
pela ideologia neoliberal, na qual se busca intensificar a transformação dos
bens comuns em mercadoria, através de processos de privatização, precificação e
financerização.
A persistência desse modelo tem aprofundado as desigualdades
e a destruição da natureza, através dos planos de salvamento do capital nos
momentos de aprofundamento da crise. Nesse cenário, as ações do capital são
orientadas pela manutenção a qualquer custo das suas taxas de juros, lucro e
renda. Esse modelo impõe à América Latina e ao Caribe o papel de produtores de
artigos primários e fornecedores de matéria prima, atividades econômicas
intensivas em bens naturais e força de trabalho. Subordina a economia desses
países a um papel dependente na economia mundial, sendo alvos prioritários
dessa estratégia de ampliação da exploração a qualquer custo. O Brasil, que
sedia esta edição do FAMA, é exemplar nesse sentido.
O golpe aplicado recentemente expõe a ação coordenada de
corporações com setores do parlamento, da mídia e do judiciário para romper a
ordem democrática e submeter o governo nacional a uma agenda que atenda seus
interesses rapidamente. A mais dura medida orçamentária do mundo foi implantada
em nosso país, onde o orçamento público está congelado por 20 anos, garantindo
a drenagem de recursos públicos para o sistema financeiro e criando as bases
para uma onda privatizante, incluindo aí a infraestrutura de armazenamento, distribuição
e saneamento da água. Quais são as estratégias das corporações para a água?
Identificamos que o objetivo das corporações é exercer o controle privado da
água através da privatização, mercantilização e de sua titularização,
tornando-a fonte de acumulação em escala mundial, gerando lucros para as
transnacionais e ao sistema financeiro. Para isso, estão em curso diversas
estratégias que vão desde o uso da violência direta até formas de captura
corporativa de governos, parlamentos, judiciários, agências reguladoras e
demais estruturas jurídico-institucionais para atuação em favor dos interesses
do capital.
Há também uma ofensiva ideológica articulada junto aos meios
de comunicação, educação e propaganda que buscam criar hegemonia na sociedade
contrária aos bens comuns e a favor de sua transformação em mercadoria. O
resultado desejado pelas corporações é a invasão, apropriação e o controle
político e econômico dos territórios, das nascentes, rios e reservatórios, para
atender os interesses do agronegócio, hidronegócio, indústria extrativa,
mineração, especulação imobiliária e geração de energia hidroelétrica. O
mercado de bebida e outros setores querem o controle dos aquíferos.
As corporações querem também o controle de toda a indústria
deabastecimento de água e esgotamento sanitário para impor seu modelo de
mercado e gerar lucros ao sistema financeiro, transformando direito
historicamente conquistado pelo povo em mercadoria. Querem ainda se apropriar
de todos os mananciais do Brasil, América Latina e dos demais continentes para
gerar valor e transferir riquezas de nossos territórios ao sistema financeiro,
viabilizando o mercado mundial da água Denunciamos as transnacionais Nestlé,
Coca-Cola, Ambev, Suez, Veolia, Brookfield (BRK Ambiental), Dow AgroSciences,
Monsanto, Bayer, Yara, os organismos financeiros multilaterais, como o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional, e ONGs ambientalistas de mercado,
como The Nature Conservancy e Conservation International, entre outras que
expressam o caráter do “Fórum das Corporações”. Denunciamos o crime cometido
pela Samarco, Vale e BHP Billiton, que contaminou com sua lama tóxica o Rio
Doce, assassinando uma bacia hidrográfica inteira, matando inúmeras pessoas, e
até hoje seu crime segue impune.
Denunciamos o recente crime praticado pela norueguesa Hydro
Alunorte que despejou milhares de toneladas de resíduos da mineração através de
canais clandestinos no coração da Amazônia e o assassinato do líder comunitário
Sergio Almeida Nascimento que denunciava seus crimes. Exemplos como esses têm
se reproduzido por todo o mundo. Os povos têm sido as vítimas desse avanço do
projeto das corporações. As mulheres, povos originários, povos e comunidades
tradicionais, populações negras, migrantes e refugiados, agricultores familiares
e camponeses e as comunidades periféricas urbanas têm sofrido diretamente os
ataques do capital e as consequências sociais, ambientais e culturais de sua
ação. Nos territórios e locais onde houve e/ou existem planos de privatização,
aprofundam-se as desigualdades, o racismo, a violência sexual e sobrecarga de
trabalho para as mulheres, a criminalização, assassinatos, ameaças e
perseguição a lideranças, demissões em massa, precarização do trabalho,
retirada e violação de direitos, redução salarial, aumento da exploração,
brutal restrição do acesso à água e serviços públicos, redução na qualidade dos
serviços prestados à população, ausência de controle social, aumentos abusivos
nas tarifas, corrupção, desmatamento, contaminação e envenenamento das águas,
destruição das nascentes e rios e ataques violentos aos povos e seus
territórios, em especial às populações que resistem às regras impostas pelo
capital.
A dinâmica de acumulação capitalista se entrelaça com o
sistema hetero-patriarcal, racista e colonial, controlando o trabalho das
mulheres e ocultando intencionalmente seu papel nas esferas de reprodução e
produção. Nesse momento de ofensiva conservadora, há o aprofundamento da
divisão sexual do trabalho e do racismo, causando o aumento da pobreza e da
precarização da vida das mulheres. A violência contra as mulheres é uma
ferramenta de controle sobre nossos corpos, nosso trabalho e nossa autonomia.
Essa violência se intensifica com o avanço do capital, refletindo-se no aumento
de assassinato de mulheres, da prostituição e da violência sexual. Tudo isso
impossibilita as mulheres de viver com dignidade e prazer. Para as diversas
religiões e espiritualidades, todas essas injustiças em relação às águas e seus
territórios, caracterizam uma dessacralização da água recebida como um dom
vital, e dificultam as relações com o Transcendente como horizonte maior das
nossas existências.
Destacamos que para os Povos Originários e Comunidades
Tradicionais há uma relação interdependente com as águas, e tudo que as atinge,
e que todos os ataques criminosos que sofre, repercutem diretamente na
existência desses povos em seus corpos e mentes. Esses povos se afirmam como
água, pois existe uma profunda unidade entre eles e os rios, os lagos, lagoas,
nascentes, mananciais, aquíferos, poços, veredas, lençóis freáticos, igarapés,
estuários, mares e oceanos como entidade única. Declaramos que as águas são
seres sagrados. Todas as águas são uma só água em permanente movimento e
transformação. A água é entidade viva, e merece ser respeitada. Por fim,
constatamos que a entrega de nossas riquezas e bens comuns conduz a destruição
da soberania e a autodeterminação dos povos, assim como a perda dos seus
territórios e modos de vida.
Mas nós afirmamos:
resistimos e venceremos!
Nossa resistência e luta é legítima. Somos os guardiões e
guardiãs das águas e defensores da vida. Somos um povo que resiste e nossa luta
vencerá todas as estruturas que dominam, oprimem e exploram nossos povos,
corpos e territórios. Somos como água, alegres, transparentes e em movimento.
Somos povos da água e a água dos povos. Nestes dias de convívio coletivo,
identificamos uma extraordinária diversidade de práticas sociais, com enorme
riqueza de culturas, conhecimento e formas de resistência e de luta pela vida. Ninguém
se renderá. Os povos das águas, das florestas e do campo resistem e não se
renderão ao capital. Assim também tem sido a luta dos povos, dos operários e de
todos os trabalhadores e trabalhadoras das cidades que demonstram cada vez
maior força.
Temos a convicção que só a luta conjunta dos povos poderá
derrotar todas as estruturas injustas desta sociedade. Identificamos que a
resistência e a luta têm se realizado em todos os locais e territórios do
Brasil e do mundo e estamos convencidos que nossa força deve caminhar e unir-se
a grandes lutas nacionais e internacionais. A luta dos povos em defesa das
águas é mundial. Água é vida, é saúde, é alimento, é território, é direito
humano, é um bem comum sagrado.
O que propomos
Reafirmamos que as diversas lutas em defesas das águas dizem
em alto e bom som que água não é e nem pode ser mercadoria. Não é recurso a ser
apropriado, explorado e destruído para bom rendimento dos negócios. Água é um
bem comum e deve ser preservada e gerida pelos povos para as necessidades da
vida, garantindo sua reprodução e perpetuação. Por isso, nosso projeto para as
águas tem na democracia um pilar fundamental. É só por meio de processos
verdadeiramente democráticos, que superem a manipulação da mídia e do dinheiro,
que os povos podem construir o poder popular, o controle social e o cuidado
sobre as águas, afirmando seus saberes, tradições e culturas em oposição ao
projeto autoritário, egoísta e destrutivo do capital. Somos radicalmente
contrários às diversas estratégias presentes e futuras de apropriação privada
sobre a água, e defendemos o caráter público, comunitário e popular dos
sistemas urbanos de gestão e cuidado da água e do saneamento. Por isso saudamos
e estimulamos os processos de reestatização de companhias de água e esgoto e
outras formas de gestão.
Seguiremos denunciando as tentativas de privatização e
abertura de Capital, a exemplo do que ocorre no Brasil, onde 18 estados
manifestaram interesse na privatização de suas companhias. Defendemos o
trabalho decente, assentado em relações de trabalho democráticas, protegidas e
livre de toda forma de precarização. Também é fundamental a garantia do acesso
democrático e sustentável à água junto à implementação da reforma agrária e
defesa dos territórios, com garantia de produção de alimentos em bases
agroecológicas, respeitando as práticas tradicionais e buscando atender a
soberania alimentar dos trabalhadores e trabalhadoras urbanos e do campo,
florestas e águas.
Estamos comprometidos com a superação do patriarcado e da
divisão sexual do trabalho, pelo reconhecimento de que o trabalho doméstico e
de cuidados está na base da sustentabilidade da vida. O combate ao racismo
também nos une na luta pelo reconhecimento, titulação e demarcação dos
territórios dos povos originários e comunidades tradicionais e na reparação ao
povo negro e indígena que vive marginalizado nas periferias dos centros
urbanos. Nosso projeto é orientado pela justiça e pela solidariedade, não pelo
lucro. Nele ninguém passará sede ou fome, e todos e todas terão acesso à água
de qualidade, regular e suficiente bem como aos serviços públicos de
saneamento.
Nosso plano de ações
e lutas
A profundidade de nossas debates e elaborações coletivas, o
sucesso da nossa mobilização, a diversidade do nosso povo e a amplitude dos
desafios que precisam ser combatidos nos impulsionam a continuar o
enfrentamento ao sistema capitalista, patriarcal, racista e colonial, tendo
como referência a construção da aliança e da unidade entre toda a diversidade
presente no FAMA 2018. Trabalharemos, através de nossas formas de luta e
organização para ampliar a força dos povos no combate à apropriação e
destruição das águas. A intensificação e qualificação do trabalho de base junto
ao povo, a ação e a formação política para construir uma concepção crítica da
realidade serão nossos instrumentos. O povo deve assumir o comando da luta.
Apostamos no protagonismo e na criação heroica dos povos.
Vamos praticar nosso apoio e solidariedade internacional a
todos os processos de lutas dos povos em defesa da água denunciam a arquitetura
da impunidade, que, por meio dos regimes de livre-comércio e investimentos,
concede privilégios às corporações transnacionais e facilitam seus crimes
corporativos. Multiplicaremos as experiências compartilhadas no Tribunal Popular
das Mulheres, para a promoção da justiça popular, visibilizando as denúncias
dos crimes contra a nossa soberania, os corpos, os bens comuns e a vida das
mulheres do campo, das florestas, águas e cidades. A água é dom que a
humanidade recebeu gratuitamente, é direito de todas as criaturas e bem comum.
Por isso, nos comprometemos a unir mística e política, fé e profecia em suas
práticas religiosas, lutando contra os projetos de privatização,
mercantilização e contaminação das águas que ferem a sua dimensão sagrada.
O Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) apoia, se
solidariza e estimulará todos os processos de articulação e de lutas dos povos
no Brasil e no mundo, tais como a construção do “Congresso do Povo”, do
“Acampamento Terra Livre”, da “Assembleia Internacional dos Movimentos e
Organizações dos Povos”, da “Jornada Continental pela Democracia e Contra o
Neoliberalismo”; da campanha internacional para desmantelar o poder corporativo
e pelo “tratado vinculante” como ferramenta para exigir justiça, verdade e
reparação frente aos crimes das transnacionais. Convocamos todos os povos a
lutar juntos para defender a água. A água não é mercadoria. A água é do povo e
pelos povos deve ser controlada. É tempo de esperança e de luta. Só a luta nos
fará vencer. Triunfaremos!
Assinam a declaração:
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil Articulação Semiárido Brasileiro
Associação Brasileira de Saúde Coletiva Associação Nacional dos Serviços
Municipais de Saneamento Cáritas Brasil Central de Movimentos Populares
Conselho Nacional das Populações Extrativistas Confederação Nacional dos
Urbanitários Confederação Nacional das Associações de Moradores Coordenação
Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas Conselho
Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura Comissão Pastoral da Terra Confederação Sindical de
Trabalhadores/as das Américas Central Única dos Trabalhadores Federação de
Órgãos para Assistência Social e Educacional
Fórum Brasileiro de ONGs
e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Federação
Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal Federação
Interestadual de Sindicatos de Engenheiros Frente Nacional pelo Saneamento
Ambiental Federação Nacional dos Urbanitários Federação Única dos Petroleiros
Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social Instituto Brasileiro de Proteção
Ambiental Internacional de Serviços Públicos Marcha Mundial das Mulheres
Movimento dos Atingidos por Barragens Movimento dos Pequenos Agricultores
Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra Movimento dos Trabalhadores Sem Teto ONG
Proscience Rede Mulher e Mídia Serviço Interfranciscano de Justiça Paz e
Ecologia Sociedade Internacional de Epidemiologia Ambiental Vigência.
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